Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

6 de julho de 2022

Walter Raleigh: O pastor apaixonado por seu amor


Venha viver comigo e seja meu amor;
E nós todos os prazeres provaremos
Que colinas e vales, vales e campos,
Bosques ou montanhas íngremes produzem.

E nós sentaremos sobre as rochas,
Vendo os pastores alimentando seus rebanhos
Por rios rasos em cujas cachoeiras
pássaros melodiosos cantam madrigais.

E te farei canteiros de rosas,
E mil ramalhetes perfumados;
Um chapéu de flores e um kirtle
bordado com folhas de murta;

Um vestido feito da mais fina lã
que arrancamos de nossos lindos cordeiros;
Lindas sapatilhas de linéd para o frio,
Com fivelas do mais puro ouro;

Um cinto de palha e botões de hera,
Com fechos de coral e botões de âmbar:
E, se esses prazeres te moverem,
Venha viver comigo, e seja meu amor.

Os jovens pastores dançarão e cantarão
Para o teu deleite em cada manhã de maio:
Se essas delícias tua mente se pode mover,
então viva comigo e seja meu amor.



Walter Raleigh
Reino Unido, 1552-1618
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Cora Coralina: Meu destino



Nas palmas das tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferido no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes --
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos
Passavas com o fardo da vida...
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida...



Cora Coralina
Brasil, 1889-1985
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Chico Buarque: Futuros amantes



Não se afobe, não
Que nada é pra já
O amor não tem pressa
Ele pode esperar em silêncio
Num fundo de armário
Na posta-restante
Milênios, milênios 
No ar

E quem sabe, então
O Rio será
Alguma cidade submersa
Os escafrandistas virão
Explorar sua casa
Seu quarto, suas coisas
Sua alma, desvãos

Sábios em vão
Tentarão decifrar
O eco de antigas palavras
Fragmentos de cartas, poemas
Mentiras, retratos
Vestígios de estranha civilização

Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você



Chico Buarque
Brasil, 1944
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Cecília Meireles: Canção



Não te fies no tempo nem na eternidade,
que as nuvens me puxam pelos vestidos
que os ventos me arrastam contra o meu desejo!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro
que amanhã morro e não te vejo!
Não demores tão longe, em lugar tão secreto,
nácar de silêncio que o mar comprime,
o lábio, limite do instante absoluto!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã eu morro e não te escuto!
Aparece-me agora, que ainda reconheço
a anêmona aberta na tua face 
e em redor dos muros o vento inimigo...
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã eu morro e não te digo...



Cecília Meireles
Brasil, 1901-1964
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Olavo Bilac: XXX

 
Ao coração que sofre, separado
Do teu, no exílio em que a chorar me vejo,
Não basta o afeto simples e sagrado
Com que das desventuras me protejo.
Não me basta saber se sou amado,
Nem só desejo o teu amor: desejo
Ter nos braços o teu corpo delicado,
Ter na boca a doçura de teu beijo.
E as justas ambições que me consomem
Não me envergonham: pois maior baixeza
Não há que a terra pelo céu trocar;
E mais eleva o coração de um homem
Ser de homem sempre e, na maior pureza,
Ficar na terra e humanamente amar.


Olavo Bilac
Moçambique, 1967
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5 de julho de 2022

Hilda Hilst: Tenta-me de novo



E por que haverias de querer minha alma 
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.




Hilda Hilst
Brasil, 1930-2004
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Mario Quintana: Bilhete

 
Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites em cima dos telhados
Deixa em paz os passarinhos
Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem de ser bem devagarinho, Amada,
que a vida é breve, o amor mais breve ainda...



Mario Quintana
Brasil, 1906-1994
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Paulo Leminski: Amar você é coisa de minutos


 
Amar você é coisa de minutos
A morte é menos que teu beijo
Tão bom ser teu que sou
Eu a teus pés derramado
Pouco resta do que fui
De ti depende ser bom ou ruim 
Serei o que achares conveniente
Serei para ti mais que um cão
Uma sombra que te aquece
Um deus que não esquece
Um servo que não diz não
Morto teu pai serei teu irmão
Direi os versos que quiseres
Esquecerei todas as mulheres
Serei tanto e tudo e todos
Vais ter nojo de eu ser isso
E estarei a teu serviço
Enquanto durar meu corpo
Enquanto me correr nas veias
O rio vermelho que se inflama
Ao ver teu rosto feito tocha
Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha
Sim, eu estarei aqui




Paulo Leminski
Brasil, 1944-1989
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Herberto Helder: Tríptico

 
I

Transforma-se o amador na coisa amada com seu
feroz sorriso, os dentes,
as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
e silêncio. Traz o barulho das ondas frias
e das ardentes pedras que tem dentro de si.
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
silêncio da sua última vida.
O amador transforma-se de instante para instante,
e sente-se o espírito imortal do amor
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas.

Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.
E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal,
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas.
transforma-se em noite extintora.
Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ela bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.

Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
que escuta
fica com aquele grito para sempre na cabeça
a arder com o primeiro dia do verão. Ela ouve
e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
do amador.
depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,
dá-lhe o grito dele.
E o amador e a coisa amada são um único grito
anterior de amor.

E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
de amador. E ela é batida, e bate-lhe
com o seu espírito de amada.
Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
do amor. Enquanto em cima
o silêncio do amador e da amada alimentam
o imprevisto silêncio do mundo
e do amor.


II

Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente os teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
-- eu não sei como dizer-te cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
-- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
-- não sei como dizer-te que a pureza
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve abstracto
correr do espaço --
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave -- qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
o que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.


III

Todas as coisas são mesa para os pensamentos
onde faço minha vida de paz
num peso íntimo de alegria como um existir de mão
fechada puramente sobre o ombro.
-- Junto a coisas magnânimas de água
e espíritos,
a casas e achas de manso consumindo-se,
ervas e barcos altos -- meus pensamentos criam-se
com um outrora lento, um sabor
de terra velha e pão diurno.

E em cada minuto a criatura
feliz do amor, a nua criatura
da minha história de desejo,
inteiramente se abre em mim como um tempo,
uma pedra simples,
ou um nascer de bichos num lugar de maio.

Ela explica tudo, e o vir para mim --
como se levantam paredes brancas
ou se dão festas nos dedos espantados das crianças
-- é a vida ser redonda
com seus ritmos sobressaltados e antigos.
Tudo é trigo que se coma e ela
é o trigo das coisas,
o último sentido do que acontece pelos dias dentro.
Espero cada momento seu
como se espera o rebentar das amoras
e a suave loucura das uvas sobre o mundo.
-- E o resto é uma altura oculta,
um leite e uma vontade de cantar.



Herberto Helder
Portugal, 1930-2015
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4 de julho de 2022

Alvares de Azevedo: Amor



Amemos! Quero de amor
Viver no teu coração!
Sofrer e amar essa dor
Que desmaia de paixão!

Na tu'alma, em teus encantos
E na tua palidez
E nos teus ardentes prantos
Suspirar de languidez!

Quero em teus lábios beber
Os teus amores do céu,
Quero em teu seio morrer
No enlevo do seio teu!

Quero viver d'esperança,
Quero tremer e sentir!
Na tua cheirosa trança
Quero sonhar e dormir!

Vem, anjo, minha donzela,
Minh'alma, meu coração!
Que noite, que noite bela!
Como é doce a viração!


E entre os suspiros do vento
Da noite ao mole frescor,
Quero viver um momento,
Morrer contigo de amor!




Alvares de Azevedo
Brasil, 1831-1852
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Adélia Prado: Casamento



Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos pela primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.




Adélia Prado
Brasil, 1935
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Herberto Helder: Minha cabeça estremece...

 



Minha cabeça estremece com todo o esquecimento
Eu procuro dizer como tudo é outra coisa.
Falo, penso.
Sonho sobre os tremendos ossos dos pés.
É sempre outra coisa, uma
só coisa coberta de nomes.
E a morte passa de boca em boca
com a leve saliva,
com o terror que há sempre
no fundo informulado de uma vida.
Sei que os campos imaginam as suas
próprias rosas.
As pessoas imaginam os seus próprios campos
de rosas. E às vezes estou na frente dos campos
como se morresse;
outras, como se agora somente
eu pudesse acordar.
Por vezes tudo se ilumina.
Por vezes canta e sangra.
Eu digo que ninguém se perdoa no tempo.
Que a loucura tem espinhos como uma garganta.
Eu digo: roda ao longe o outono,
e o que é o outono?
As pálpebras batem contra o grande dia masculino
do pensamento.
Deito coisas vivas e mortas no espírito da obra.
Minha vida extasia-se como uma câmara de tochas.




Herberto Helder
Portugal, 1930-2015
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Herberto Helder: Sobre um poema



Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
- E o poema faz-se contra o tempo e a carne.


Herberto Helder

        Portugal, 1930-2015
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1 de julho de 2022

Herberto Helder: Bicicleta

 

Lá vai a bicicleta do poeta em direcção
ao símbolo, por um dia de verão
exemplar. De pulmões às costas e bico
no ar, o poeta pernalta dá à pata
nos pedais. Uma grande memória, os sinais
dos dias sobrenaturais e a história
secreta da bicicleta. O símbolo é simples.
Os êmbolos do coração ao ritmo dos pedais --
lá vai o poeta em direcção aos seus
sinais. Dá à pata
como os outros animais.

O sol é branco, as flores legítimas, o amor
confuso. A vida é para sempre tenebrosa.
Entre as rimas e o suor, aparece e desaparece uma rosa. No dia de verão,
violenta, a fantasia esquece. Entre
o nascimento e a morte, o movimento da rosa floresce
sabiamente. E a bicicleta ultrapassa
o milagre. O poeta aperta o volante e derrapa
no instante da graça.

De pulmões às costas, a vida é para sempre
tenebrosa. A pata do poeta
mal ousa agora pedalar. No meio do ar
distrai-se a flor perdida. A vida é curta.
Puta de vida subdesenvolvida.
O bico do poeta corre os pontos cardeais.
O sol é branco, o campo plano, a morte
certa. Não há sombra de sinais.
E o poeta dá à pata como os outros animais.

Se a noite cai agora sobre a rosa passada,
e o dia de verão se recolhe
ao seu nada, e a única direcção é a própria noite
achada? De pulmões às costas, a vida
é tenebrosa. Morte é transfiguração,
pela imagem de uma rosa. E o poeta pernalta
de rosa interior dá à pata nos pedais
da confusão do amor.
Pela noite secreta dos caminhos iguais,
o poeta dá à pata como os outros animais.

Se o sul é para trás e o norte é para o lado,
é para sempre a morte.
Agarrado ao volante e pulmões às costas
como um pneu furado,
o poeta pedala o coração transfigurado.
Na memória mais antiga a direcção da morte
é a mesma do amor. E o poeta,
afinal mais mortal do que os outros animais,
dá à pata nos pedais de um verão interior.




Herberto Helder
Portugal, 1930-2015
in Poesia Toda
Editor: Assírio & Alvim
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Herberto Helder: Tríptico II

Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
-- eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
-- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
-- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço --
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai na curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave -- qualquer
coisa extraordinária.
porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.




Herberto Helder
Portugal, 1930-2015
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30 de junho de 2022

Herberto Helder: A faca não corta o fogo

 
a faca não corta o fogo,
não me corta o sangue escrito,
não corta a água,
e quem não queria uma língua dentro da própria língua?
eu sim queria,
jogando linho com dedos, conjugando
onde os verbos não conjugam,
no mundo há poucos fenómenos do fogo,
água há pouca,
mas a língua, fia-se a gente dela por não ser como se queria,
mais brotada, inerente, incalculável,
e se a mão fia a estriga e a retoma do nada,
e a abre e fecha,
é que sim que eu a amava como bárbara maravilha,
porque no mundo há pouco fogo a cortar
e a água cortada é pouca,
ique língua,
que húmida língua, que muda, miúda, relativa, absoluta,
e que pouca, incrível, muita,
 e la poésie, c'est quand le quotidien devient extraordinaire, e que música,
que despropósito, que língua língua,
é do Maurice Lefèvre, e rebenta com a boca!
queria-a toda




Herberto Helder
Portugal, 1930-2015
in A faca não corta o fogo
Editor: Assírio & Alvim
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Herberto Helder: Rosa esquerda


 
rosa esquerda, plantei eu num antigo poema virgem,
e logo ma roubaram,
logo me perderam o pequeno achado,
mas ninguém me rouba a alma.
roubam-me um erro apenas que acertava só comigo,
um umbigo, um nó,
um nome que só em mim era floral e único



Herberto Helder
Portugal, 1930-2015
in Servidões
Editor: Assírio & Alvim
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Herberto Helder: Alguém salgado porventura...
















alguém salgado porventura
te
toca
entre as omoplatas,
alguém algures sopra quente nos ouvidos,
e te apressa, enquanto corres
algumas braças acima
do chão fluido, leva-te a luz e subleva,
tão aturdidos dedos e sopros,
até ao recôndito,
alguma vez te tocaram nas têmporas e nos testículos, alto,
baixo,
com mais mão de sangue e abrasadura,
e te cruzaram nesse furor,
e criaram, com bafo
ardido, ásperos sais nos dedos, e te levaram,
a luz corrente lavrando o mundo,
cerrado e duro e doloroso, acaso
sabias
a que domínios e plenitudes idiomáticas
de íngremes ritmos, que buraco negro,
na labareda radioactiva,
bic cristal preta onde atrás raia às vezes
um pouco de urânio escrito




Herberto Helder
Portugal, 1930-2015
in A faca não corta o fogo
Editor: Assírio & Alvim
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Herberto Helder: Carta à amada



Sou mais alto do que a palmeira,
porque os meus olhos chegam às palmas,
chegam às aves voando por cima das palmas.
Sou mais longo do que um rio,
porque ouço o longínquo rumor do mar
ou fechado os olhos vejo o fulgor das praias.

 Sou mais poderoso do que uma leoa,
porque a minha dor escrita chega mais longe que o seu rugido,
chega às mãos da minha amada, a dor escrita,
chega mais longe que o rugido
a dor escrita chega às mãos da minha amada.




Herberto Helder
Portugal, 1930-2015
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28 de junho de 2022

Adélia Prado: Objeto de Amor

 

De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdôo, eu amo.



Adélia Prado
(Brasil 1935)

20 de junho de 2022

Egipto (1567-1085 a. C.): Quando me dás as boas vindas

 

Quando me dá as boas vindas
De braços bem abertos
Sinto-me como aqueles viajantes que regressam
Das longínquas terras de Punt.

Tudo se muda, o pensamento, os sentidos,
Em perfume rico e estranho

E quando ela entreabre os lábios para beijar
Fico com a cabeça leve, fico ébrio sem cerveja.




Egipto
1567-1085 a. C.
in Rosa do Mundo (2001 Poemas para o Futuro)
Editor: Assírio & Alvim
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17 de junho de 2022

América, Maias: Prece para curar a Epilepsia

 

Fogo verde, névoa no ar,
tornas-te epilepsia. 
Fogo amarelo, tornas-te epilepsia.
Vento norte,
tornas-te epilepsia,
epilepsia engendrada pelo sono, engendrada pelo
sonho, epilepsia,
névoa branca, tornas-te epilepsia,
névoa vermelha, tornas-te epilepsia.
Desatamos,
nove vezes desatamos,
desfazemos,
nove vezes desfazemos,
aplacamos, Senhor, nove vezes aplacamos.
Uma hora, meia hora, para que saia como uma névoa,
para que saia como uma borboleta, para que saia.
Regula-te, pulso grande! Regula-te, pulso pequeno!
Os dois pulsos numa hora, meia hora,
Senhor, assim seja.
Sais agora, epilepsia, sais agora,
sobre treze montanhas,
sobre treze cumeeiras,
sais ao meio de treze renques de árvores,
sais ao meio de treze renques de pedras,
sais agora.



América, Maias
in Livro dos Cantares de Dbitbalché
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América do Sul, Quíchuas: Canção

 

Não disse que semeasses a flor
aqui, acolá,
quando ainda não chovia
aqui, acolá.

Eu sei que posso semear a flor
aqui, acolá.,
e regá-la com o meu pranto
aqui, acolá.

Sou moça, sou nobre, sou querida
aqui, acolá,
dá-me o amor que te dei
aqui, acolá.




América do Sul, Quíchuas
Séc. XVI-XVII
Trad. Herberto Helder
In Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro
Editor: Assirio & Alvim
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Índios da América do Norte: A Iúca



Mesmo diante da casa, no alto
daquela montanha,
cresce a flor da iúca,
vibrante tocha dos deuses.
É a sua luz que me cega.
É a sua luz que é mais alta
do que eu sobre um cavalo.

E não se rasga o vento, balançando
as suas ancas.
Sob o peso das estrelas, muitas vezes
estremece. «Porque sou assim tão grande,
assim tão só? Ah, ah! Ué!»

E a dormideira e a alfazema devagar 
se acariciam. «Porque sou assim tão grande,
tão exposta à solidão? Ah, ah! Ué!»
Mas no meio da manhã ela cresce
mais ainda.

Como a flor da iúca, tu também
-- alta, intacta.
Tocha dentro dos meus sonhos, cada vez
mais no espaço.
-- E a minha mão mal te roça.



Índios da América do Norte
in Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro
Editor: Assírio & Alvim
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Cecília Meireles: Lua Adversa

 

Tenho fases, como a lua,
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...).
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...




Cecília Meireles
Brasil, 1901-1964
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