Há o mar há a mulher
quer um quer outro me
chegam em acessíveis baías
abertas talvez no
adro amplo das tardes dos domingos
Oiço chamar mas não
de uma forma qualquer
chamar mas de uma
certa maneira
talvez um apelo ou
uma presença ou um sofrimento
Ora eu que no fundo
apesar das muitas
palavras vindas nas muitas páginas dos dicionários
bem vistas as coisas
disponho somente de duas palavras
desde a primeira
manhã do mundo
para nomear só duas
coisas
apenas preciso de as
atribuir
Não sei se gosto mais
do mar
se gosto mais da
mulher
Sei que gosto do mar
sei que gosto da mulher
e quando digo o mar a
mulher
não digo mar ou
mulher só por dizer
Ao dizer o mar a
mulher
há penso eu um certo
tom na minha voz sinto um certo travo na boca
que mostram que mais
do que palavras usadas para falar
dizer como eu digo a
mulher o mar
mar mulher assim
ditos
são uma maneira
talvez de gostar
e a consciência de
que se gosta
e um prazer em o
dizer
um gosto afinal em
gostar
Enfim o mar a mulher
pode num dos casos
ser a/mar a mulher
mera forma talvez de
uniformizar o artigo
definido do singular
Há ondas no mar
o mar rebenta em
ondas espraiadas nos compridos cabelos da mulher
que ela faz ondular
melhor de tarde em tarde
no mês de setembro
nas marés vivas
O melhor da mulher
talvez o olhar
é para mim o mar da
mulher
e à mulher que um só
dia encontro na vida
de passagem um
simples momento num sítio qualquer
talvez a muitos
quilómetros do mar
mas mulher que não
mais consigo esquecer
mesmo imerso na dor
ou submerso em cuidados
a essa mulher
qualquer
eu chamo mulher do
mar
Nos fins de setembro
quando eu partir
de uma cidade seja
ela qual for
quando eu pressentir
que alguém morre
que alguma coisa fica
para sempre nos dias
e ou nuns olhos ou
numa água
num pouco de água ou
em muita água
onda do mar lágrima
ou brilho do olhar
eu recear seriamente
vir-me a submergir
direi alto ou baixo
conforme puder
com a boca toda ou já
a custar-me a engolir
as palavras mar ou
mulher
com certo vagar e
cada vez mais devagar
mulher mar
depois quase já só a
pensar
o mar a mulher
Não sei mas será
talvez mais que outra
coisa qualquer
uma forma de me
despedir
Rui Belo
(Portugal 1933-1978)
in O tempo das suaves
raparigas e outros poemas de amor
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