12 de fevereiro de 2013

Intervalo Doloroso: Fernando Pessoa


  293.  

Como alguém cujos olhos, erguidos de um longo [  ] de um livro, receba 
violência para eles de um mero claro sol natural, se ergo às vezes de mim 
os meus olhos de ver-me dói-me e arde-me fitar a nitidez e independência 
de mim da vida claramente externa, da existência dos outros, da posição e 
correlação dos momentos no espaço. Tropeço nos sentimentos reais dos 
outros, o antagonismo dos seus psiquismos com o meu, entala-me 
entaramela-me os passos, escorrego e destrambelho-me por entre e por
sobre o som das suas palavras, estranho o ser ouvido em mim, a apreço 
forte e certo dos seus passos no chão atual, os seus gestos que existem 
verdadeiramente, os seus ásperos e complexos modos de serem outras 
pessoas que não variantes da minha.

     Encontro-me então, nestes abismos em que me precipito às vezes, 
desamparado e oco, parecendo que morri e vivo, pálida sombra dolorida, 
que a primeira brisa deitará por terra e o primeiro contato desfará em pó.

     Pergunto-me então em mim próprio se valerá a pena todo o esforço que 
pus em me isolar e elevar, se o lento calvário que de mim fiz para a minha 
Glória Crucificada valerá religiosamente a pena? E , ainda que saiba que valeu, 
pesa-me neste momento o sentimento de que não valeu, de que não valerá 
(nunca.)

Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
In Livro do Desassossego

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