Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

28 de janeiro de 2013

Porque é solitária a noite: Piedad Bonnett

Penso no teu sexo
nomeio o teu sexo convoco-o
raio e falcão ou talvez algo mais doce
e menos literário
o teu outro coração em atropelo
que vai acendendo lumes
redimindo ás minhas sombras

Sentir o teu sexo amor a sua dura chuva

Mas nomear o teu sexo transforma em papel
a tua bela fúria cega
afasta-te do meu sexo que está triste
porque é solitária a noite
quando escrevo o teu sexo      quatro letras
quando penso o teu sexo e o tempo abre
um parêntesis e estás noutro sitio
e atravessas outro rio.

Piedad Bonnett
(Colombia 1951)
in Um pais que chora - Cem anos de poesia colombiana

27 de janeiro de 2013

O teu sono anoiteceu... : José Luis Peixoto

o teu sono anoiteceu mais que a noite
e hei-de escrever-te sempre sem que nunca
te escreva sei as palavras que fechaste
nos olhos mas não sei as letras de as dizer
ensina-me de novo se ensinares-me for
ir ter contigo ao teu sorriso ensina-me
a nascer para onde dormes que me perco
tantas vezes numa noite demasiado pequena
para o teu sono num silêncio demasiado fundo
dormes e tento levantar a pedra que
cobre e tento encontrar-te mais uma vez
nas palavras que te dizem só para mim
o teu sono anoiteceu mais que as mortes
que posso suportar e hei-de escrever-te
sempre e mais uma vez sozinho esta noite

José Luís Peixoto     in A Criança em ruínas
(Portugal 1974)            

26 de janeiro de 2013

Vida : Augusto Branco


Já perdoei erros quase imperdoavéis
Tentei substituir pessoas insubstituíveis
E esquecer pessoas inesquecíveis

Já fiz coisas por impulso
Já me desiludi com pessoas
Que nunca imaginei que me desiludiriam
Mas também desiludi alguém

Já abracei para proteger
Já ri quando não devia
Fiz amigos eternos
E amigos que nunca mais vi

Amei e fui amado
Mas também fui rejeitado
Fui amado e não amei

Já gritei e saltei de tanta felicidade
Já vivi de amor e fiz promessas eternas
Mas também me magoei muitas vezes

Já telefonei só para ouvir uma voz
E apaixonei-me por um sorriso.
Já pensei que fosse morrer de tanta saudade
Tive medo de perder alguém especial
(e acabei por perder).

Mas vivi!
E ainda vivo!
Não passo pela vida.
E também tu não deverias passar!

Bom é lutar com determinação
Abraçar a vida com paixão
Perder com classe
E vencer com ousadia
Porque o mundo pertence a quem se atreve
E a vida é muito para ser insignificante.

Vive!

Augusto Branco            in Vida 
(Brasil 1980)

Como o Touro: Miguel Hernández


Como o touro fui feito para o luto
e a dor, e como touro estou marcado
por um ferro infernal sobre o costado
e varão, nas virilhas como um fruto.

Como touro acha tudo muito diminuto
este meu coração desmesurado,
e, do rosto do beijo enamorado,
como o touro é que o teu amor disputo.

Como o touro me assomo no castigo,
a língua em coração tenho banhada e,
no pescoço, um vendaval estouro.

Como o touro te sigo e te persigo e deixas
meu desejo em uma espada,
Como o touro burlado, como o touro.

 Miguel Hernández
 (Espanha 1910-1942)

O olhar: Miguel Godinho


Ele estava quimicamente alterado
pela embriaguez do momento.
Descobrira-lhe a inocência de repente
algures por entre o erotismo evidente
e a loucura feroz.
de nada lhe valia tudo
o que aprendera até então porque
o importante agora era apenas o olhar
desnudo e imoral numa bala
direita ao  seu corpo
em busca de sangue

Miguel Godinho
(Portugal 1979)

Deus e Tu: Jorge Valência Jaramillo

No princípio eram a noite e o caos.
Veio Deus e criou o céu e a terra
e a luz o dia e o homem.
Depois deteve-se, pensou um instante :
fez-te a ti.
E olhou-te fixamente, fixamente...
teve medo e disse para consigo:
"Eram mais seguros a noite e o caos"

Jorge Valência Jaramillo
(Colômbia 1933)
in Um País Que Sonha
Cem anos de poesia colombiana

Antes tu e eu éramos: Fu Hsiuan

Antes tu e eu éramos
um só, como o corpo e a sua sombra;
agora somos, tu e eu,
como a nuvem que foge após um aguaceiro.

Antes tu e eu éramos
como o som e o seu eco, acordes entre si;
agora somos, tu e eu,
como as folhas mortas caídas dos ramos.

Antes tu e eu éramos
como o ouro e a pedra, sem mancha nem fissura;
agora somos, tu e eu,
como uma estrela extinta ou um esplendor passado.

Fu Hsiuan
(China Sec. III)

Vingança: Jorge Valência Jaramillo

I
Talvez te espantes se te disser
que tenho um grande desejo
um desejo profundo:
que o teu novo amante
te ame muito
muito mais do que eu.

II
Depois
terei o prazer de saber
que sofreu muito
muito mais do que eu.

Jorge Valência Jaramillo
(Colômbia 1933)
in Um País Que Sonha
Cem anos de poesia colombiana

Desperta esta noite: Ono No Komachi

Desperta esta noite
pela maior solidão,
não posso deixar
de ansiar ardentemente
a vinda de um belo luar.

Terá o amor
de acabar em solidão ,
sem que vislumbremos
esse rasgão entre as nuvens
onde o luar enche o céu?

Pensei ter colhido
a flor do esquecimento
só para mim mesma:
mas encontrei-a a crescer
também no coração dele.


Ono No Komachi
(Japão 834?)
in O Japão no Feminino I

Sem você: Frederico Barbosa

Sem você
nenhuma metáfora
traduz a falta
nenhuma imagem
exata
faca encravada
nesse silêncio
dia sem dia
piada sem graça
acordar sem você
me mata

Frederico Barbosa
(Brasil 1959)