Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

30 de junho de 2013

Assim, não iremos vaguear de novo: Lord Byron


Assim, não iremos vaguear de novo
Tão tarde errar pela noite dentro,
Mesmo que o coração esteja amoroso
E a lua brilhe no firmamento

A espada clara mais do que a bainha,
A alma mais que o peito, e o coração,
Com as pausas que faz, melhor respira,
Pra que o próprio anor descanse então.

Fosse embora a noite feita para amar
E regresse cedo demais o dia,
Não iremos outra vez vaguear
Quando o luar nos alumia.


Lord Byron
England 1788-1824
Tradução de António Simões

Sempre!: João de Deus


Pensas que te não vejo a ti? Bom era!
Gravei tão vivamente n'alma a dôce
E bella imagem tua, que eu quizera
Deixar de contemplar-te, só que fosse
Um momento, e não posso, não consigo!

Foges-me, escondes-te e que importa? Esculpes
Mais fundo ainda os indeleveis traços!
Realça-te o retrato! E não me culpes!
Culpa-te antes a ti!... Sigo-te os passos!...
Vejo-te sempre!... trago-te comigo!...

João de Deus
Portugal 1830-1896
in 'Campo de Flores'
photo by Google

Espera: João de Deus

Uivaria de amor a féra bruta
Que pela grenha te sentisse a mão!
E eu não sou féra, pomba! Espera! Escuta!
       Eu tenho coração!

Não é mais preto o ébano que as tranças
Que adornam o teu collo seductor!
Ai não me fujas, pomba! que me canças!
       Não fujas, meu amor!

A mim nasceu-me o sol, rompeu-me o dia
Da noite escura d'olhos taes, mulher!
Não me apagues a luz que me alumia
       Senão quando eu morrer!

Eu não te peço a ti que as mãos de neve,
Os dedos afusados d'essas mãos,
Me toquem estas minhas nem de leve...
       Seriam rogos vãos!

Não te peço que os labios nacarados
Me deixem esses dentes alvejar,
Trocando, n'um sorriso, os meus cuidados
       Em extasis sem par!

Mas uivando de amor a bruta féra
Que pela grenha te sentisse a mão,
Eu não sou féra, pomba! escuta, espera!
       Eu tenho coração!

João de Deus
Portugal 1830-1896
in 'Campo de Flores'

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Adeus: João de Deus
























A ti, que em astros desenhei nos céos,
A ti, que em nuvens desenhei nos ares,
A ti, que em ondas desenhei nos mares,
A ti, bom anjo! o derradeiro adeus!

Parto! Se um dia (que é possivel flôr!)
Vires ao longe negrejar um vulto,
Sou eu que aos olhos d'esta gente occulto
O nosso immenso desgraçado amor.

Talvez as féras ao ouvir meus ais,
As brutas selvas, as montanhas brutas,
Concavas rochas, solitarias grutas,
Mais se condoam, se commovam mais!

E lá d'aquellas solidões se aqui
Chegar gemido que uma pedra estala,
Que um cedro vibra, que um carvalho abala,
Sou eu que o solto por amor de ti...

De ti! que em folha que varrer o ar,
Em rama, em sombra que bandeie a aragem,
De fito sempre n'essa cara imagem
Verei, sorrindo, sentirei passar!

De ti, que em astros desenhei nos céos!
De ti, que em nuvens desenhei nos ares!
De ti, que em ondas desenhei nos mares,
E a quem envio o derradeiro adeus!

João de Deus
Portugal 1830-1896

in 'Campo de Flores'

Sim, Júlia, querida Júlia: António Feliciano de Castilho






















(…)
Sim, Júlia, querida Júlia;
Ah! pudesse o meu amor
Dar-te da sua violência
Uma prova inda maior!
Atravessar por desertos
A extensão da imensidade;
Passar mil séculos juntos
No meio da tempestade;
Fender todo inteiro a nado
De fogo um mar infinito;
-Júlia, eu te amo, eu te amo, ó Júlia
Ninguém me ouvira outro grito.


António Feliciano de Castilho
Portugal 1800-1875
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29 de junho de 2013

Quimera: Vorosmarty Mihály




Por teu amor,
destruía a razão
e, com ela, todos os pensamentos,
e das doces imagens região;
alma soltava aos ventos,
por teu amor.

Por teu amor,
árvore era no cume
de rocha, verde folhagem vestia,
sofrendo raio, temporal em fúria,
e no Inverno morreria,
por teu amor.

Por teu amor,
pedra de rocha era,
ali no fundo em chama ardente,
numa dor insuportável deveras,
sofrendo mudamente,
por teu amor.

Por teu amor,
alma solta um dia
a Deus pediria que devolvesse,
ornando-me com virtude maior,
e, alegre, eu ta daria,
por teu amor.


Vorosmarty Mihály
Hungria 1800-1855
trad. de Ernesto Rodrigues

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Annabel Lee: Edgar Allan Poe


Foi há muitos e muitos anos já,
Num reino ao pé do mar.
Como sabeis todos, vivia lá
Aquela que eu soube amar;
E vivia sem outro pensamento
Que amar-me e eu a adorar.
Eu era criança e ela era criança,
Neste reino ao pé do mar;
Mas o nosso amor era mais que amor --
O meu e o dela a amar;
Um amor que os anjos do céu vieram
a ambos nós invejar.
E foi esta a razão por que, há muitos anos,
Neste reino ao pé do mar,
Um vento saiu duma nuvem, gelando
A linda que eu soube amar;
E o seu parente fidalgo veio
De longe a me a tirar,
Para a fechar num sepulcro
Neste reino ao pé do mar.
E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.
Mas o nosso amor era mais que o amor
De muitos mais velhos a amar,
De muitos de mais meditar,
E nem os anjos do céu lá em cima,
Nem demônios debaixo do mar
Poderão separar a minha alma da alma
Da linda que eu soube amar.
Porque os luares tristonhos só me trazem sonhos
Da linda que eu soube amar;
E as estrelas nos ares só me lembram olhares
Da linda que eu soube amar;
E assim 'stou deitado toda a noite ao lado
Do meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,
No sepulcro ao pé do mar,
Ao pé do murmúrio do mar.

Edgar Allan Poe
EUA 1809-1849
in Obra poética completa

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A Rosa: Alexandre Herculano


Pura em sua inocência,
Entre a sarça espinhosa,
Purpúrea esplende, inda botão intacto,
Na madrugada a rosa.

É da campina a virgem
A pudibunda flor;
Em seus eflúvios matutina brisa
Bebe o primeiro amor.

O sol inunda as veigas:
Calou-se o rouxinol;
E a flor, ébria de gloria, à luz fervente,
Desabrochou-a o sol.

O sopro matutino
No seio seu pousara:
Prostituída à luz, fugiu-lhe a brisa,
Que a linda rosa amara.

Bela se ostenta um dia;
Saúdam-na as pastoras;
Dão-lhe mil beijos, gorjeando, as aves;
Voam do gozo as horas.

Lá vem chegando a noite,
E ela empalideceu:
Incessante prazer mirrou-lhe a seiva;
A rosa emurcheceu.

Desce o tufão dos montes,
Os matos sacudindo;
Desfalecida a flor desprende as folhas,
Que o vento vai sumindo.

Onde estará a rosa,
Do prado a bela filha?
O tufão, que espalhou seus frágeis restos,
Passou: não deixou trilha.

Da sarça a flor virente
Nasceu, gozou, e é morta:
E a qual desses amantes de um momento
Seu fado escuro importa?

Nenhum, nenhum por ela
Gemeu saudoso à tarde;
Não há quem junte as derramadas folhas,
Quem amoroso as guarde.

Só da manhã o sopro,
Passando no outro dia,
Da rosa, que adorou, quando a inocência
Em seu botão sorria,

Junto do tronco humilde
O curso demorando,
Veio depositar perdão, saudade,
Queixoso sussurrando.

De quantas és a imagem,
Oh desgraçada flor!
Quantos perdões sobre um sepulcro abjecto
Tem murmurado o amor!


Alexandre Herculano
Portugal 1810-1877
in Poemas portugueses

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Não te entendo, coração: João de Lemos


Porque tímido lhe falo,
E dantes não era assim?
Porque mal a voz lhe escuto
Não sei o que sinto em mim?
Porque nunca um não me acode
Em tudo que ela diz sim?

Porque estremeço contente
Quando ela me estende a mão,
E se aos outros faz o mesmo
Porque é que não gosto enão?
Deveras que não me entendo,
Nem te entendo, coração.

Ou me enganas, ou te engano;
Se isto amor não pode ser,
Não atino, não conheço
Que outro nome possa ter;
Ai, coração, que vivemos
Sem tu nem eu o saber.





João de Lemos
Portugal 1819-1890
in 366 poemas que falam de amor

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Leito de folhas verdes: Gonçalves Dias


Por que tardas, Jatir, que tanto a custo
À voz do meu amor moves teus passos?
Da noite a viração, movendo as folhas,
Já nos cimos do bosque rumoreja.

Eu sob a copa da mangueira altiva
Nosso leito gentil cobri zelosa
Com mimoso tapiz de folhas brandas,
Onde o frouxo luar brinca entre flores.

Do tamarindo a flor abriu-se, há pouco,
Já solta o bogari mais doce aroma!
Como prece de amor, como estas preces,
No silêncio da noite o bosque exala.

Brilha a lua no céu, brilham estrelas,
Correm perfumes no correr da brisa,
A cujo influxo mágico respira-se
Um quebranto de amor, melhor que a vida!

A flor que desabrocha ao romper d’alva
Um só giro do sol, não mais, vegeta:
Eu sou aquela flor que espero ainda
Doce raio do sol que me dê vida.

Sejam vales ou montes, lago ou terra,
Onde quer que tu vás, ou dia ou noite,
Vai seguindo após ti meu pensamento;
Outro amor nunca tive: és meu, sou tua!

Meus olhos outros olhos nunca viram,
Não sentiram meus lábios outros lábios,
Nem outras mãos, Jatir, que não as tuas
A arazóia na cinta me apertaram.

Do tamarindo a flor jaz entreaberta,
Já solta o bogari mais doce aroma
Também meu coração, como estas flores,
Melhor perfume ao pé da noite exala!

Não me escutas, Jatir! nem tardo acodes
À voz do meu amor, que em vão te chama!
Tupã! lá rompe o sol! do leito inútil
A brisa da manhã sacuda as folhas!


Gonçalves Dias
Brasil 1823-1864

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O Amor Infinito: Camilo Castelo Branco


Da mulher o que nos comove e enleva é a parte impoluta que ela tem do céu; é a magia que a fada exercita obedecendo a interno impulso, não sabido dela, não sabido de nós. Ali há mensagem de outras regiões; aqui, no peito arquejante, nos olhos amarados de gozozas lágrimas, há um espirar para o alto, um ir-se o coração avoando desde os olhos, desde o sorriso dela para soberanas e imorredouras alegrias. Nós é que não sabemos nem podemos ver senão o pouquinho desse infinito que nos entre-luz nas graças do primeiro amor, do segundo amor, de quantos estremecimentos de súbita embriaguez nos fazem crer que despimos o invólucro de barro e pairamos alados sobre a região das lágrimas.

É Deus que não quer ou somos nós que não podemos prorrogar a duração ao sonho? Se Deus, que mal faria à sua divina grandeza que o pequenino guzano o adorasse sempre? Porque vai tão rápida aquela estação em que o homem é bom porque ama, e é caritativo e dadivoso porque tudo sobeja à sua felicidade? Quando poderam aliar-se um amor puro com a impureza das intenções? Quais olhos de homem afectivo e como santificado por seu amor recusaram chorar sobre desgraças estranhas? Que exuberância de bens a desbordar da alma! Que ânsia de fazermos em redor de nós alegrias, fortunas, mãos erguidas connosco a bem-dizer os contentamentos que nos chove o manancial dos puros deleites.

Não é Deus que nos agourenta as alegrias castas, as espirações que lhe comprazem. Nós é que não sabemos que luz é essa da nova manhã que dentro nos alumia voluptuosidades desconhecidas. Atribuímos ao efeito os prestígios da causa. É que não podemos ver por longo tempo a mensageira dos mundos estrelados: quizemos pôr a mão na vara que nos encantou; e a vara fez-se serpente, porque a alma imaculada já não era o impulsor da nossa ansiedade. O homem, escurecido já no interior, viu a mulher ao sol da terra, sol que incende o sangue, e abraza o rosto e cresta as asas do anjo. Ai dos anjos em carne que olham depois em si e correm a vestir-se da folhagem do paraíso! Desde esse momento a luz do homem, o calor das paixões radia do montante de fogo que empunha o executor de alta justiça. Fora do éden está o inferno. A baliza encravada na fronteira maldita chama-se o TÉDlO.


Camilo Castelo Branco
Portugal 1825-1890
in Obras completas

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Paixão única: Camilo Castelo Branco














Quem me dera poder ver-te!
Ai! quem me dera dizer-te,
Que pude amar-te, e perder-te,
Mas olvidar-te... isso não!
Que no ardor de outros amores,
Através de mil dissabores,
Senti vivas sempre as dores
Duma remota paixão.

Com que dorida saudade
Penso nessa mocidade,
Nessa vaga ansiedade,
Que soubeste compreender!
E tu só, só tu soubeste,
Que, num mundo, como este,
Qual florinha em penha agreste,
Pode a flor da alma morrer.

Orvalhaste-a quando ainda,
Ao nascer, singela e linda,
Respirava a esperança infinda,
Que consigo a infância tem.
Amparaste-a, quando o norte
Das paixões, soprando forte,
Lhe quiz dar rápida morte
Como à cândida cecem!

E, depois, nuvem escura
Lá no céu desta ventura
Enlutou-me a aurora pura
Dos meus anos infantis.
Houve nesta vida um espaço,
Onde nunca dei um passo,
Em que não deixasse um traço
De paixões torpes e vis !

E não tenho outra memória
Que me inspire altiva gloria,
Nem outro nome na historia
De meus delírios fatais.
Se percorro à longa escala,
De paixões que a honra cala,
Quem de um nobre amor me fala
És só tu... e ninguém mais!..

És só tu! De resto, apenas
Nestas variadas cenas
De ilusões, e inglórias penas,
Nada sinto o que perdi!...
Sinto bem esse desdouro,
Que comprei com falso ouro,
Em desprezo de um tesouro,
Que só pude achar em ti!


Camilo Castelo Branco
Portugal 1825-1890
in Carta a Patrícia Emília
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26 de junho de 2013

O Segredo de Salvar-me Pelo Amor: Camilo Castelo Branco


Quem há aí que possa o cálix
De meus lábios apartar?
Quem, nesta vida de penas,
Poderá mudar as cenas
Que ninguém pôde mudar ?

Quem possui na alma o segredo
De salvar-me pelo amor?
Quem me dará gota de água
Nesta angustiosa frágua
De um deserto abrasador?

Se alguém existe na terra
Que tanto possa, és tu só!
Tu só, mulher, que eu adoro,
Quando a Deus piedade imploro,
E a ti peço amor e dó.

Se soubesses que tristeza
Enluta meu coração,
Terias nobre vaidade
Em me dar felicidade,
Que eu busquei no mundo em vão.


Busquei-a em tudo na terra,
Tudo na terra mentiu!
Essa estrela carinhosa
Que luz à infância ditosa
Para mim nunca luziu.

Infeliz desde criança
Nem me foi risonha a fé;
Quando a terra nos maltrata,
Caprichosa, acerba e ingrata,
Céu e esperança nada é.

Pois a ventura busquei-a
No vivo anseio do amor,
Era ardente a minha alma;
Conquistei mais de uma palma
À custa de muita dor.

Mas estas palmas tais eram
Que, postas no coração,
Fundas raízes lançavam,
E nas lágrimas medravam
Com frutos de maldição.

Em ânsias de alma, a ventura
Nos dons da ciência busquei.
Tudo mentira! A ciência
Era um sinal de impotência
Da vã Razão que invoquei...

Era um brado, um testemunho
Do nada que o mundo é.
Quanto a minha mente erguia
Tudo por terra caía,
Só ficava Deus e a fé.

Lancei-me aos braços do Eterno
Com o fervor de infeliz;
Senti mais fundas as dores,
Mais agros os dissabores...
O próprio Deus não me quis!

Depois, no mundo, cercado
Só de angustias, divaguei
De um abismo a outro abismo
Pedindo ao louco cinismo
O prazer que não achei.

Tristes correram meus anos
Na infância que em todos é
Bela de crenças e amores,
Terna de risos e flores
Santa de esperança e de fé.

Assim negra me era a vida
Quando, ó luz da alma, te vi
Baixar do céu, onde outrora
Te busquei, mão redentora,
Procurando amparo em ti.

Serás tu a mão piedosa,
Que se estende entre escarcéus
Ao perdido naufragado?
Serás tu, ser adorado,
Um prémio vindo dos céus?

E eu mereço-te, que imenso
Tem já sido o meu quinhão
De torturas não sabidas,
Com resignação sofridas
Nos seios do coração.

Que ternura e amor e afagos
Toda a vida te darei!
Com que jubilo e delírio,
Nova dor, novo martírio,
De ti vindo, aceitarei!

Se na terra um céu desejas
Como o céu que eu tanto quis,
Se d'um anjo a glória queres,
Serás anjo, se fizeres,
Contra o destino, um feliz.

Faz que eu veja nestas trevas
Um relâmpago de amor,
Que eu não morra sem que diga:

«Tive no mundo uma amiga,
Que entendeu a minha dor.

Deu-me ela o estro grande
Das memoráveis canções;
Acendeu-me a extinta chama
Da inspiração que inflama
Regelados corações.

Os segredos dos afectos
Que mais puros Deus nos deu,
Ensinou-mos ela um dia
Que de entre arcanjos descia
Com linguagem do céu.

Os mimosos pensamentos
Que, de mim soberbo, leio,
Inspirou-mos, deu-mos ela
Recostando a fronte bela
Sobre o meu ardente seio.

Morta estava a fantasia
Que o gelo da alma esfriou;
Tinha o espírito dormente,
Só no peito um fogo ardente,
Quando o céu me a deparou.

Agora morro no gozo
De uma saudade imortal.
Foi ditosa a minha sorte;
Amei, vivi: venha a morte,
Que morte ou vida é-me igual.

Igual, sim, que o amor profundo,
Como foi na terra o meu,
Não expira, é sempre vivo,
Sempre ardente e progressivo
Em perpétuo amor do céu».

Assim, querida, meus lábios,
Já moribundos, dirão,
Nas agonias supremas,
Essas palavras extremas
Do meu ao teu coração.

Sabes quem é, neste mundo,
Quase igual ao Redentor?
É quem diz: «Sou adorada
Pela alma resgatada,
Por mim, das ânsias da dor.»

                                                     Carta a Ana Plácido
Camilo Castelo Branco
Portugal 1825-1890
in Obras Completas

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