Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

31 de março de 2014

Ana Hatherly: Príncipe




Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.

São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me



Ana Hatherly
Portugal (Porto) 1929
in Poemas de Amor
Antologia de Poesia Portuguesa
Org: Inês Pedrosa
Editor: Publicações D. Quixote

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Ana Hatherly: Esta noite morrerás






Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e aquele que procurar a marca dos teus passos
encontra urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
Esta noite morrerás.
Quando a lua vier tocar-me o rosto
terás partido do meu leito
e uma gota de sangue ressequido
é a marca dos teus passos.
No coração do tempo pulsa um maquinismo ínscio
e na casa do tempo a hora é adorno.
Quando a lua vier tocar-me o rosto a tua sombra extinta marca
o fim de um eclipse horário de uma partida iminente e o tempo
apaga a marca dos teus passos sobre o meu nome.
Constante.
O mar é isso.
A lua vir tocar-me o rosto e encontrar urtigas crescendo
por sobre o teu nome.
O mar é tu morreste.
O mar é ser noite e vir a lua tocar-me o rosto quando tu par-
tiste e no meu leito crescem folhas sangue.
A febre é uma pira incompreensível como a aparição da lua
e a opacidade do mar.
No meu leito a lua vai tocar-me o rosto e a tua ausência é um
prisma, um girassol em panóplia.
Agora a lua chega devagar e o mar é o leito de tu teres
partido, uma infrutescência de eu procurar a marca dos teus
passos por sobre o meu rosto.
A noite é eu procurar a marca dos teus passos.
Esta noite a lua terá um halo de concêntricas florações
de gotas do teu sangue e a irisada sombra do meu leito
é o teu rosto iminente.
A lua é uma seta.
Tu partiste é o silêncio em forma de lança.
Esta noite vou erguer-me do meu leito e quando a lua vier
tocar-me o rosto vou uivar como um lobo.
Vou clamar pelo teu sangue extinto.
Vou desejar a tua carne viva, os teus membros esparsos,
a tua língua solta.
O teu ventre, lua.
Vou gritar e enterrar as unhas nos teus olhos até que
o mar se abra e a lua possa vir tocar-me o rosto.
Esta noite vou arrancar um cabelo e com a tua ausência faço
um pêndulo para interrogar a lua por tu teres partido e a marca
dos teus passos ser a razão mágica de a lua poder surgir de
noite e urtigas crescerem no meu leito.
E se encontrar a marca dos teus passos vou crivar-lhe
o coração de alfinetes para que tu partiste seja a razão
mágica de tu poderes morrer-te.
Quando a lua vier em forma de lança vai trespassar um pássaro
para lhe ler nas entranhas a direcção tu partiste e a marca dos
teus passos consiste nos olhos abertos de um pássaro esventrado.
Ah, mas o luar é uma pluma do meu leito e a lua é o colo de
tu morreste para poderes enfim tocar-me o rosto.



Ana Hatherly
Portugal (Porto) 1929
in Poemas de Amor
Antologia de Poesia Portuguesa
Org: Inês Pedrosa
Editor: Publicações D. Quixote

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30 de março de 2014

Alexandre O'Neill: A meu favor




A meu favor
Tenho o verde secreto dos teus olhos
Algumas palavras de ódio algumas palavras de amor
O tapete que vai partir para o infinito
Esta noite ou uma noite qualquer

A meu favor
As paredes que insultam devagar
Certo refúgio acima do murmúreo
Que da vida corrente teime em vir
O barco escondido pela folhagem
O jardim onde a aventura recomeça



Alexandre O’Neill
Portugal (Lisboa) 1924-1986
in Poesias Completas
Editor: Assirio & Alvim

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Alexandre O'Neill: Um adeus português


























Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

                  
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.



Alexandre O’Neill
Portugal (Lisboa) 1924-1986
in Poesias Completas
Editor: Assirio & Alvim

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Natália Correia: Espírito



Nada a fazer, amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;
       
E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.
       
Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:
       
Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.
       

Natália Correia
Portugal (Ponta Delgada-Açores) 1923
Lisboa 1993
in Poemas de Amor
Antologia de poesia Portuguesa
Org: Inês Pedrosa
Editor: Publicações D. Quixote

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29 de março de 2014

David Mourão-Ferreira: Presídio


Nem todo o corpo é carne … Não, nem todo,
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco …?
E o ventre, inconsistente como o lodo? …
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor … Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo …
É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio
vulto da Primavera em pleno Outono …
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!


David Mourão-Ferreira
Portugal (Lisboa) 1927-1996
in Obra Poética
Editor: Editorial Presença
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Francisco de Aldana: De seus formosos olhos


     Só e calado, triste e pensativo,
fujo de todos com os olhos cheios
de lágrimas e dor,; sempre os enleios
de uns olhos evitando, por quem vivo.
     Neles fica meu espírito cativo
a sofrer sua paixão; e eles alheios
do seu primeiro amor, os belos seios
humedecem a chorar seu fado esquivo.
     A luz eu aguardei dessa beleza,
e na alma levo o golpe justiceiro,
e ali me segue, aonde vou, sua ira.
     Um bem tiro a meus olhos, e o primeiro,
por quem minha alma chora tal dureza,
é ver a dor que no seu rosto mira.


Francisco de Aldana
Espanha 1537-1577
in” Antologia da Poesia Espanhola
Siglo de Oro – 1ºvol. Renascimento”
Tradução: José Bento
Editor: Assirio & Alvim
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Juan de Tassis: Mudo bosque pisou a deusa moura


                               Mudo bosque pisou a deusa moura
nos tão ténues crepúsculos do dia,
canora Délia, ou Cípria que nascia
undosa em Tétis não, de branca aurora.
     Os seios leves de Pomona e Flora
Primavera animada concedia
ao que em sua amena margem cria
a rica areia que hoje o seu pé doura.
     Segunda orla safírica do céu
deidade brama ciosa na ribeira,
sendo seus cornos profusão de flores,
     onde, cisne lascivo já, quisera
em brancas plumas, cúmplices de amores,
facilitar mais prudente voo seu.


Juan de Tassis – 2º Conde de Villamediana
Portugal (Lisboa) 1582 – Espanha (Madrid) 1622
in” Antologia da Poesia Espanhola
Siglo de Oro – 2ºvol. Barroco ”
Tradução: José Bento
Editor: Assirio & Alvim
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Francisco de Rioja: TISBE




                                 Tisbe ao amante, que em cadáver mira,
com temerosa mão o rosto toca,
limpa-o com o forro de sua touca,
sobre seus lábios desertos suspira.
     Enganada, supõe que ele respira,
e é o hálito de sua própria boca;
pensa em seu fim, o seu mestre invoca,
as mãos retorce, seus cabelos tira.
     Ninguém a ajuda em tanta desventura
senão a morte, oh caso lastimoso!
O peito lança à inimiga espada:
     pegou na mão de seu esposo, dura,
e olhou-se no leito pavoroso
donzela, viúva, morta e desposada.


Francisco de Rioja
Espanha (Sevilha)n1583-1659
in” Antologia da Poesia Espanhola
Siglo de Oro – 2ºvol. Barroco ”
Tradução: José Bento
Editor: Assirio & Alvim
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Garcilaso de La Vega: Em minha alma é...



     Em minha alma é escrito vosso rosto
e quanto eu escrever de vós anseio:
vós sozinha o escrevestes, eu o leio
tão só que nisto vos evito a gosto.
     Nisto estou e estarei sempre disposto
que, não cabendo em mim o meu enleio,
desse bem o que não entendo creio,
tomando já a fé por pressuposto.
     Eu não nasci senão para querer-vos;
minha alma á sua altura vos talhou;
para hábito de minha alma vos quero;
     quanto possuo confesso já dever-vos;
por vós nasci, por vós na vida estou,
por vós morro, por vós morrer espero.



Garcilaso de La Veja
Espanha (Toledo) 1501-1536
in” Antologia da Poesia Espanhola
Siglo de Oro – 1ºvol.Renascimento ”
Tradução: José Bento
Editor: Assirio & Alvim

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António Feijó: O Amor e o Tempo




Pela montanha alcantilada
Todos quatro em alegre companhia,
O Amor, o Tempo, a minha Amada
E eu subíamos um dia.

Da minha Amada no gentil semblante
Já se viam indícios de cansaço;
O Amor passava-nos adiante
E o Tempo acelerava o passo.

— «Amor! Amor! mais devagar!
Não corras tanto assim, que tão ligeira
Não pode com certeza caminhar
A minha doce companheira!»

Súbito, o Amor e o Tempo, combinados,
Abrem as asas trémulas ao vento...
— «Porque voais assim tão apressados?
Onde vos dirigis?» — Nesse momento,



Volta-se o Amor e diz com azedume:
— «Tende paciência, amigos meus!
Eu sempre tive este costume
De fugir com o Tempo...
Adeus! Adeus!



António Feijó
Portugal 1859-1917
in Poemas de Amor
Antologia de Poesia Portuguesa
Org: Inês Pedrosa
Editor: Públicações D. Quixote
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Manuel Laranjeira: Na rua




 Ninguém por certo adivinha
como essa Desconhecida,
entre estes braços prendida,
jurava ser toda minha.

Minha sempre! – E em voz baixinha:
─ «Tua ainda além da vida!…»
Hoje fita-me, esquecida
do grande amor que me tinha.

Juramos ser imortal
esse amor estranho e louco…
E o grande amor, afinal,

(Com que desprezo me lembro!)
foi morrendo pouco a pouco,
como uma tarde em Setembro…


Manuel Laranjeira
Portugal (São Martinho de Mozelos) 1877-1912
in Poemas de Amor
Antologia de Poesia Portuguesa
Org: Inês Pedrosa
Editor: Publicações D. Quixote
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Ricardo Reis: Vem sentar-te comigo, Lídia



Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
    (Enlacemos as mãos).

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
    Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
    E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
    E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
    Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
    Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
    Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o o bolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
    Pagã triste e com flores no regaço.



Ricardo Reis (Fernando Pessoa)
Portugal (Lisboa) 1888-1935
in Odes de Ricardo Reis
Editor: Ática
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Irene Lisboa: Amor





























Aqueles olhos aproximam-se e passam.
Perplexos, cheios de funda luz,
doces e acerados, dominam-me.
Quem os diria tão ousados?
Tão humildes e tão imperiosos,
tão obstinados!

Como estão próximos os nossos ombros!
Defrontam-se e furtam-se,
negam toda a sua coragem.
De vez em quando
esta minha mão,
que é uma espada e não defende nada,
move-se na órbita daqueles olhos,
fere-lhes a rota curta,
poderosa e plácida.

Amor, tão chão de Amor,
que sensível és...
Sensível e violento, apaixonado.
Tão carregado de desejos!

Acalmas e redobras
e de ti renasces a toda a hora.
Cordeiro que se encabrita e enfurece
e logo recai na branda impotência.

Canseira eterna!
Ou desespero, ou medo.
Fuga doida à posse, à dádiva.
Tanto bater de asas frementes,
tanto grito e pena perdida...
E as tréguas, amor cobarde?
Cada vez mais longe,
mais longe e apetecidas.
Ó amor, amor,
que faremos nós de ti,
e tu de nós?


Irene Lisboa
Portugal (Arruda dos Vinhos) 1892-1958
in Poemas de Amor
Antologia de Poesia Portuguesa
Org: Inês Pedrosa
Editor: Publicações D. Quixote

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Carlos de Oliveira: Carta a Ângela


Para ti, meu amor, é cada sonho
de todas as palavras que escrever,
cada imagem de luz e futuro,
cada dia dos dias que viver.

Os abismos das coisas , quem os nega,
se em nós abertos inda em nós persistem?
Quantas vezes os versos que te dou
na água dos teus olhos é que existem!

Quantas vezes chorando te alcancei
e em lágrimas de sombra nos perdemos!
As mesmas que contigo regressei
ao ritmo da vida que escolhemos!

Mais humana da terra dos caminhos
e mais certa, dos erros cometidos,
foste , de novo, e de sempre, a mão da esperança
nos meus versos errantes e perdidos.

Transpondo os versos vieste à minha vida
e um rio abriu-se onde era areia e dor.
Porque chegaste à hora prometida
aqui te deixo tudo, meu amor!


                   aqui te deixo tudo, meu Amor!

Carlos de Oliveira
Brasil (Belém do Pará) 1921
Portugal (Lisboa) 1981
in Trabalho Poético
Editor: Assirio & Alvim

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Sophia Mello Breyner Andresen: Terror de te Amar



Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa



Sophia de Mello Breyner Andresen
Portugal (Porto) 1919 – (Lisboa) 2004
in Obra Poética
Editor: Editorial Caminho

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Jorge de Sena: Fidelidade




Diz-me devagar coisa nenhuma, assim
como a só presença com que me perdoas
esta fidelidade ao meu destino.
Quanto assim não digas é por mim
que o dizes. E os destinos vivem-se
com outra vida. Ou como solidão.
E quem lá entra? E quem lá pode estar
mais que o momento de estar só consigo?
Diz-me assim devagar coisa nenhuma:
o que à morte se diria, se ela ouvisse,
ou se diria aos mortos se voltassem.


Jorge de Sena
Portugal (Lisboa) 1919
USA (California) 1978
in Antologia Poética
Editor: Guimarães Editores

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Miguel Torga: Poema melancólico a não sei que mulher



Dei-te os dias, as horas e os minutos
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão...


Miguel Torga
Portugal (Vila Real) 1907-1995
in Diário VII
Editor: Coimbra Editora

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