Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

27 de setembro de 2015

Al Berto: É tarde meu amor

























6
é tarde meu amor
estou longe de ti com o tempo, diluíste-te nas veias das marés, na saliva
de meu corpo sofrido
agora, tuas máquinas trituram-me, cospem-me, interrompem o sono
habito longe, no coração vivo das areias, no cuspo límpido dos corais...
e no ventre impossível das cidades nocturnas
a solidão tem dias mais cruéis
tentei ser teu, amar-te e amar o falso ouro... quis ser grande e morrer contigo
enfeitar-me com tuas luas brancas, pratear a voz em tuas águas de seda...
cantar-te os gestos com ternura
mas não
águas, águas, inquinadas pulsando dentro do meu corpo, como um peixe
ferido, louco
em mim a lama... e o visco inocente dos teus náufragos sem nome-de-rua,
nem estátua-de-jardim-público
aceito o desafio do teu desdém
na boca ficou-me um gosto a salmoura e destruição
apenas possuo o corpo magoado destas poucas palavras tristes que te cantam

(...)



Al Berto
Portugal, Coimbra 1948 – Lisboa 1997
in O Medo
Editor: Assirio & Alvim
photo by Google

Al Berto: Quando aqui não estás

Quando aqui não estás
o que nos rodeou põe-se a morrer
a janela que abre para o mar
continua fechada só nos sonhos
me ergo
abro-a
deixo a frescura e a força da manhã
escorrem pelos dedos prisioneiros
da tristeza
acordo
para a cegante claridade das ondas
um rosto desenvolve-se nítido
além
rasando o sal da imensa ausência
uma voz
quero morrer
com uma overdose de beleza
e num sussurro o corpo apaziguado
perscruta esse coração
esse
solitário caçador



Al Berto
Portugal, Coimbra 1948 – Lisboa 1997
in O Medo
Editor: Assirio & Alvim
photo by Google

António Botto: Por uma noite de Outono

Por uma noite de outono
Lá nessa nave sombria,
Hei-de contigo deitar-me,
Mulher branca e muda e fria!

Hei-de possuir na morte
O teu corpo de marfim,
Mulher que nunca me olhaste,
Que nunca pensaste em mim...

E quando, no fim do mundo,
A trombeta, além, se ouvir,
Apertar-te-ei mais ainda,
- Não te deixarei partir!

A tua boca formosa
Será sempre dos meus beijos;
E o teu corpo a minha pátria,
A pátria dos meus desejos.




António Botto
Portugal, Concavada 1897
Brasil, Rio de Janeiro 1959
 in As canções de António Botto
Editor: Editorial Presença
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António Botto: Foi numa tarde de Julho

Foi numa tarde de Julho.
Conversávamos a medo,
- Receios de trair
Um tristíssimo segredo.

Sim, duvidávamos ambos:
Ele não sabia bem
Que o amava loucamente
Como nunca amei ninguém.
E eu não acreditava
Que era por mim que o seu olhar
De lagrimas se toldava...

Mas, a dúvida perdeu-se;
Falou alto o coração!
- E as nossas taças
Foram erguidas
Com infinita perturbação!

Os nossos braços
Formaram laços.

E, aos beijos, ébrios, tombámos;
- Cheios de amor e de vinho!

(Uma suplica soava:)

«Agora... morre comigo,
Meu amor, meu amor... devagarinho!...»



António Botto
Portugal, Concavada 1897
Brasil, Rio de Janeiro 1959
 in As canções de António Botto
Editor: Editorial Presença
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António Botto: Tu mandaste-me dizer

Tu mandaste-me dizer
Que tornavas novamente
Quando viesse a tardinha;
E eu, para mais te prender,
- N'esse dia...

Pintei de negro os meus olhos
E de roxo a minha boca.
As rosas eram aos molhos
Para a noite rubra e louca!

Entornei sobre o meu corpo,
- Que fora delgado e belo!
O perfume mais estranho e mais subtil;
E um brocado roxo e verde
Envolveu a minha carne
Macerada e varonil.
Os meus ombros florentinos,
Cobertos de pedraria,
Eram chagas luminosas
Alumiando o meu corpo
Todo em febre e nostalgia.
Nas minhas mãos de cambraia,
As esmeraldas cintilavam;
E as pérolas nos meus braços,
Murmuravam...
Desmanchado, o meu cabelo,
Em ondas largas, caía,
Na minha fronte
Ligeiramente sombria.

Estava pálido e dir-se-ia
Que a palidez aumentava
A minha grande beleza!

Na minha boca ondulava
Um sorriso de tristeza.

A noite vinha tombando.

E, como tardasses,
Fiquei-me, sentado, olhando
O meu vulto reflectido
No espelho de cristal;

E afinal,
Nem frescura, nem beleza,
No meu rosto descobri!

- Ó morte, não me procures!
E tu, meu amor, não venhas!...
- Eu já morri.



António Botto
Portugal, Concavada 1897
Brasil, Rio de Janeiro 1959
 in As canções de António Botto
Editor: Editorial Presença
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6 de setembro de 2015

Menotti Del Picchia: Antes de amar eu dizia




(...)

"Antes de amar eu dizia:

para curar da alma

esta constante agonia,

preciso amar algum dia."



"Amei desventura minha!

Quis curar-me e piorei.



O amor só mágoas continha

e aos tormentos que já tinha,

novos tormentos juntei."

(...)






Menotti Del Picchia 

Brasil, S. Paulo 1892-1988

in Juca Mulato

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