Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

15 de setembro de 2013

Saudade: João de Deus


Tu és o cálix;
Eu, o orvalho!
Se me não vales,
Eu o que valho?

Eu se em ti caio
E me acolheste
Torno-me um raio
De luz celeste!

Tu és o collo
Onde me embalo,
E acho consolo,
Mimo e regalo:

A folha curva
Que se aljofara,
Não d'agoa turva,
Mas d'agoa clara!

Quando me passa
Essa existencia,
Que é toda graça,
Toda innocencia,

Além da raia
D'este horizonte—
Sem uma faia,
Sem uma fonte;

O passarinho
Não se consome
Mais no seu ninho
De frio e fome,

Se ella se ausenta,
A boa amiga,
Ah! que o sustenta
E que o abriga!

Sinto umas magoas
Que se confundem
Com as que as agoas
Do mar infundem!

E quem um dia
Passou os mares
É que avalia
Esses pezares!

Só quem lá anda
Sem achar onde
Sequer expanda
A dôr que esconde;

Longe do berço,
Morrendo á mingoa,
Paiz diverso...
Diversa lingoa...

Esse é que sabe
O meu tormento,
Mal se me acabe
Aquelle alento!

Ah, nuvem branca
Ah, nuvem d'oiro!
Ninguem me estanca
Amargo choro;

E assim que passes
Mesmo de largo...
Vê n'estas faces
Se ha pranto amargo.

Tu és o norte
Que me desvias
De ir dar á morte
Todos os dias;

A larga fita
Que d'alto monte
Cerca e limita
O horizonte!

Tu és a praia
Que eu sollicito!
Tu és a raia
D'este infinito!

Se ha uma gruta
Onde me esconda
Á força bruta
Que traz a onda;

Á força immensa
D'esta corrente
D'alma que pensa,
Alma que sente;

Se ha uma véla,
Se ha uma aragem,
Se ha uma estrella,
N'esta viagem...

É quem eu amo,
A quem adoro!
E por quem chamo!
E por quem choro!

João de Deus
Portugal 1830-1896
 in 'Campo de Flores”
photo by Google 

Desânimo: João de Deus
















Que mimos me confortam?
Que doce luz me acena?
Eu tenho muita pena
De ter nascido até!

Quizera antes ao pé
D'uma arvore frondosa
Ter já em cima a lousa
E descançar emfim!

Alli, nem tu de mim
De certo te lembravas,
Nem estas feras bravas
Me iriam assaltar!

Alli, teria um ar
Mais puro e respiravel,
E a paz imperturbavel
De quem, emfim, morreu!

D'alli, veria o céo
Ora sereno e puro,
Ora toldado e escuro...
Ainda assim melhor,

Que este areal de amor
Onde ando ao desamparo,
Onde a ninguem sou caro
E nem, a mim, ninguem!

Alli passára eu bem
A noite derradeira
Á sombra hospitaleira
Que mais ninguem me dá!

Tu mesma, que não ha
Quem eu mais queira e ame,
Quem a minha alma inflamme
De mais ardente amor,

Os ais da minha dôr
A ti o que te importam?
Teus olhos nem supportam
A minha vista ao pé!

Que mimos me confortam?
Que dôce luz me acena?
Eu tenho muita pena
De ter nascido até!


João de Deus
Portugal 1830-1896
in 'Campo de Flores'
photo by Google