Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

5 de maio de 2013

Al Berto: diário de uma paixão

Procuro o teu perfume, teu ombro, tua mão no respirar momo das casas.
Revolvo-me no branco dos lencóis, como o mar se revolve contra as parades, em maré viva.
O sopro de teu sono humedece-me o peito Manhã confusa nevoenta luz
onde se quebra o pesadelo. Procuro-te, peixe alucinante, no fundo lodoso de mim.
O dia nasce com um travo de sol frio, e dum lado para o outro, dentro do exíguo quarto.
O ténue tecido das cortinas separa o sonho vivido em ti da cidade há muito acordada.
Prolongo esse instante de ilusão, espio o teu corpo desesperadamente nu.
No espelho já não sei quem sou. Adivinho-te, paro o olhar naqueles olhos-reflexo
para me lembrar dos teus. Dentro do espelho apareceu então a lívida pele do tempo
que nos separou. Uma flor áspera cresce nos lábios, exterminadora. E na manhã mole
das flores minerais, sem forças nem esperma, meu corpo aproxima-se do mortal eclipse.
Mil partículas fosforescentes explodem convulsivas. Convulsiva borboleta do cio.
De novo o teu perfume de essência rara, álcoois nocturnos, mão, minha mão sozinha e nua
prolongando-se em forma de caroço. Palpável zinabre absorvido em espasmo lúcido, furioso.
Latejando no estilhaço cristalino da paixão, segregado no silêncio iminente da morte.
Desço as escadas, abro a porta com a solidão terrível de sonâmbulo na boca.
Compro o jornal, cigarros, o céu abre-se gelado por cima da sórdida teia dos arranha-céus.
O café, estremeço num amargor que evoca novamente a tua ausência.


Al Berto
(Portugal 1948-1997)
in O Medo
         photo by Google

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