Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

30 de junho de 2022

Herberto Helder: A faca não corta o fogo

 
a faca não corta o fogo,
não me corta o sangue escrito,
não corta a água,
e quem não queria uma língua dentro da própria língua?
eu sim queria,
jogando linho com dedos, conjugando
onde os verbos não conjugam,
no mundo há poucos fenómenos do fogo,
água há pouca,
mas a língua, fia-se a gente dela por não ser como se queria,
mais brotada, inerente, incalculável,
e se a mão fia a estriga e a retoma do nada,
e a abre e fecha,
é que sim que eu a amava como bárbara maravilha,
porque no mundo há pouco fogo a cortar
e a água cortada é pouca,
ique língua,
que húmida língua, que muda, miúda, relativa, absoluta,
e que pouca, incrível, muita,
 e la poésie, c'est quand le quotidien devient extraordinaire, e que música,
que despropósito, que língua língua,
é do Maurice Lefèvre, e rebenta com a boca!
queria-a toda




Herberto Helder
Portugal, 1930-2015
in A faca não corta o fogo
Editor: Assírio & Alvim
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Herberto Helder: Rosa esquerda


 
rosa esquerda, plantei eu num antigo poema virgem,
e logo ma roubaram,
logo me perderam o pequeno achado,
mas ninguém me rouba a alma.
roubam-me um erro apenas que acertava só comigo,
um umbigo, um nó,
um nome que só em mim era floral e único



Herberto Helder
Portugal, 1930-2015
in Servidões
Editor: Assírio & Alvim
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Herberto Helder: Alguém salgado porventura...
















alguém salgado porventura
te
toca
entre as omoplatas,
alguém algures sopra quente nos ouvidos,
e te apressa, enquanto corres
algumas braças acima
do chão fluido, leva-te a luz e subleva,
tão aturdidos dedos e sopros,
até ao recôndito,
alguma vez te tocaram nas têmporas e nos testículos, alto,
baixo,
com mais mão de sangue e abrasadura,
e te cruzaram nesse furor,
e criaram, com bafo
ardido, ásperos sais nos dedos, e te levaram,
a luz corrente lavrando o mundo,
cerrado e duro e doloroso, acaso
sabias
a que domínios e plenitudes idiomáticas
de íngremes ritmos, que buraco negro,
na labareda radioactiva,
bic cristal preta onde atrás raia às vezes
um pouco de urânio escrito




Herberto Helder
Portugal, 1930-2015
in A faca não corta o fogo
Editor: Assírio & Alvim
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Herberto Helder: Carta à amada



Sou mais alto do que a palmeira,
porque os meus olhos chegam às palmas,
chegam às aves voando por cima das palmas.
Sou mais longo do que um rio,
porque ouço o longínquo rumor do mar
ou fechado os olhos vejo o fulgor das praias.

 Sou mais poderoso do que uma leoa,
porque a minha dor escrita chega mais longe que o seu rugido,
chega às mãos da minha amada, a dor escrita,
chega mais longe que o rugido
a dor escrita chega às mãos da minha amada.




Herberto Helder
Portugal, 1930-2015
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28 de junho de 2022

Adélia Prado: Objeto de Amor

 

De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdôo, eu amo.



Adélia Prado
(Brasil 1935)

20 de junho de 2022

Egipto (1567-1085 a. C.): Quando me dás as boas vindas

 

Quando me dá as boas vindas
De braços bem abertos
Sinto-me como aqueles viajantes que regressam
Das longínquas terras de Punt.

Tudo se muda, o pensamento, os sentidos,
Em perfume rico e estranho

E quando ela entreabre os lábios para beijar
Fico com a cabeça leve, fico ébrio sem cerveja.




Egipto
1567-1085 a. C.
in Rosa do Mundo (2001 Poemas para o Futuro)
Editor: Assírio & Alvim
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17 de junho de 2022

América, Maias: Prece para curar a Epilepsia

 

Fogo verde, névoa no ar,
tornas-te epilepsia. 
Fogo amarelo, tornas-te epilepsia.
Vento norte,
tornas-te epilepsia,
epilepsia engendrada pelo sono, engendrada pelo
sonho, epilepsia,
névoa branca, tornas-te epilepsia,
névoa vermelha, tornas-te epilepsia.
Desatamos,
nove vezes desatamos,
desfazemos,
nove vezes desfazemos,
aplacamos, Senhor, nove vezes aplacamos.
Uma hora, meia hora, para que saia como uma névoa,
para que saia como uma borboleta, para que saia.
Regula-te, pulso grande! Regula-te, pulso pequeno!
Os dois pulsos numa hora, meia hora,
Senhor, assim seja.
Sais agora, epilepsia, sais agora,
sobre treze montanhas,
sobre treze cumeeiras,
sais ao meio de treze renques de árvores,
sais ao meio de treze renques de pedras,
sais agora.



América, Maias
in Livro dos Cantares de Dbitbalché
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América do Sul, Quíchuas: Canção

 

Não disse que semeasses a flor
aqui, acolá,
quando ainda não chovia
aqui, acolá.

Eu sei que posso semear a flor
aqui, acolá.,
e regá-la com o meu pranto
aqui, acolá.

Sou moça, sou nobre, sou querida
aqui, acolá,
dá-me o amor que te dei
aqui, acolá.




América do Sul, Quíchuas
Séc. XVI-XVII
Trad. Herberto Helder
In Rosa do Mundo – 2001 poemas para o futuro
Editor: Assirio & Alvim
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Índios da América do Norte: A Iúca



Mesmo diante da casa, no alto
daquela montanha,
cresce a flor da iúca,
vibrante tocha dos deuses.
É a sua luz que me cega.
É a sua luz que é mais alta
do que eu sobre um cavalo.

E não se rasga o vento, balançando
as suas ancas.
Sob o peso das estrelas, muitas vezes
estremece. «Porque sou assim tão grande,
assim tão só? Ah, ah! Ué!»

E a dormideira e a alfazema devagar 
se acariciam. «Porque sou assim tão grande,
tão exposta à solidão? Ah, ah! Ué!»
Mas no meio da manhã ela cresce
mais ainda.

Como a flor da iúca, tu também
-- alta, intacta.
Tocha dentro dos meus sonhos, cada vez
mais no espaço.
-- E a minha mão mal te roça.



Índios da América do Norte
in Rosa do Mundo - 2001 Poemas para o Futuro
Editor: Assírio & Alvim
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Cecília Meireles: Lua Adversa

 

Tenho fases, como a lua,
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!

Não me encontro com ninguém
(tenho fases como a lua...).
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...




Cecília Meireles
Brasil, 1901-1964
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16 de junho de 2022

José Régio: Baptismo

 

A António Botto

Foi numa tarde, há muito, em que eu morria
Como num sonho ansiosamente vago.
Via nuvens fugindo sobre um lago,
Lá num deserto onde o luar nascia.

Morria a ouvir não sei que melodia
Fluir da flauta de não sei que mago...
E uma figura erguia-se do lago,
Vinha, mordia-me no peito..., e ardia.

A minha mãe que estava ao lado, quieta,
Eu dizia:-- "Mamã, quero ser poeta!"
E consumia-a num abraço estreito.

... De noite, ergueram-se uivos do horizonte.
E eu sentia correr, como uma fonte,
A chaga que se abria no meu peito!




José Régio
Portugal, 1901-1969
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José Régio: Beleza humana



Que tem que em raptos de feroz ternura
Nas ondas da volúpia, ao meu estreite,
Nem sei se mais com dor, mais com deleite,
Do teu corpo vibrátil escultura?

Sua forma é perfeita, a linha é pura,
A cor são rosas a boiar em leite...
Mas quando é que Outro em mim nos não espreite
Delirantes de amor na noite escura...?

Sémen, urina, bílis, cuspo, suor,
Da vida da escultura são penhor...
Como esquecê-lo, ó estátua corruptível?

Que inda nem lasso o abraço, ou corpo lasso,
Já a decepção desse Outro é que enche o espaço...
E achar-te bela, ó bela; é-me impossível.




José Régio
Portugal, 1901-1969
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15 de junho de 2022

José Régio: Painel

Era uma noite de luar medonho
(Lembro-me disto como dum sonho)
Alevantou-se um Homem a meu lado,
Todo nu, e desfigurado.

Mal me atrevendo a olhá-lo, eu que só adivinhava
Seu corpo devastado que sangrava...
E uma lembrança, longe, longe, longe, havia em mim
De já o ter amado, ou outro assim.

Seu rosto, que decerto, era sereno e puro,
Resplandecia, como um mármore, no escuro;
E as suas lágrimas, rolando devagar,
Deixavam rastros que faziam luar...

Eu prosseguia, todo trémulo e confuso,
Cheio de amor e de terror por esse intruso.
À minha mão direita, ele avançava aereamente,
Com seu ar espectral e transcendente...

Os seus pés nem pousavam no caminho;
E então, eu desatei a soluçar baixinho,
Porque notara que em seu rosto exangue
As suas lágrimas corriam misturadas com seu sangue.

Oh, onde vira eu, essa figura peregrina
Feita de terra humana e de ascensão divina?
Sim, onde a vira eu, que, só de o perguntar,
Me arrepiava, com vertigens de ajoelhar?

Mas, de repente, como um sobressalto,
E como a angústia de quem rola muito de alto,
Alguma coisa em mim passou, que pressentia,
E que se arrepelava, e que tremia...

E que em meu ombro esquerdo alguém se debruçava,
Alguém que ria um riso que espantava,
Um riso tenebroso, e cheio de atracção,
Com fogo dentro como a boca dum vulcão!

E, sem o ver, eu vi-o, todo inteiro,
Essoutro novo e inseparável companheiro:
Um que também conheço, nem sei donde nem de quando,
Por mais que me torture procurando...

E tinha pés de cabra, e tinha chifres, tinha pelos,
E tinha olhos sulfúricos, esfíngicos e belos...
A baba do seu riso escorregava-lhe da boca,
E em todo ele ardia uma lascívia louca!

À minha mão direita, absorto, aéreo, hirto,
Coroado de abrolhos e de mirto,
O Outro continuava a chorar lágrimas caladas,
Com as mãos lassas como rosas desfloradas...

Entre os dois, eu sentia-me pequeno e miserando,
Vibrando todo, tumultuando e soluçando,
Com os olhos meigos, lábios torpes -- indeciso
Entre um inferno e um paraíso!

Um riso doido e cínico, sem regra,
Subia em mim como uma onda negra,
E, estrelados de lágrimas, meus olhos inocentes
Ajoelhavam como penitentes...

Entretanto, os dois vultos desmedidos
Ias crescendo entre os meus risos e gemidos,
Crescendo sempre, sempre e tanto, que, depois,
Eu ficava esmagado entre eles dois.

A noite em que isto foi, não sei... sei lá?... (Seria
Essa em que minha mãe, com tanta angústia, me paria...)
Sei que o luar era medonho, era amarelo,
E que tudo isto parece um pesadelo!





José Régio
Portugal, 1901-1969
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Andreia C. Faria: Amo o som dos tambores

 

Amo o som dos tambores em noites de Verão
na percussão a melhor transcendência 
Amo essa humildade de magoar os pulsos
de rebentar a noite até que alguém regresse
na tumefacção do sangue
Amo essa forma de ponderar o sangue
de estremecer num corpo sem amante




Andreia C. Faria
Portugal, 1984
in Alegria para o fim do mundo
Editor: Porto Editora
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Andreia C. Faria: Segunda mão



Vesti-me sempre com as roupas de um primo 
da irmã mais velha
ou do último amor
Assim sou-lhes leal:
os dedos através dos bolsos
aflorando o sexo, a nuca
beijada de borboto, o hálito
suspenso nas golas da camisa
Com eles tropeço
na estreiteza das coxas, como cavalos
dormimos juntos no mesmo disfarce
Nada em mim cresce de que não sejam a forma
nada obsceno
que as suas roupas não cubram




Andreia C. Faria
Portugal, 1984
in Alegria para o fim do mundo
Editor: Porto Editora
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14 de junho de 2022

Eugénio de Andrade: O Sorriso

 

Creio que foi o sorriso,
o sorriso de quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.




Eugénio de Andrade
Portugal, 1923-2005
in O Outro Nome da Terra
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Joan Salvat-Papasseit: Dá-me a tua mão


 
Dá-me a tua mão que iremos pela margem
     mesmo à beira-mar
                                a latejar
saberemos a medida de todas as coisas
dizendo apenas que ainda nos amamos.

As barcas longínquas e as da areia
ficarão com ar fiel e discreto,
     não olharão para nós;
           procurarão novas rotas
com olhar lento de quem percebe, distraído.

Dá-me a mão e encosta a tua face
ao meu peito, e não temas ninguém.
E as palmeiras dar-nos-ão a sombra.
E as gaivotas o sol que brilha

trar-nos-ão o salobre que impregna,
no amor, tudo o que há junto ao mar:
e, então, eu beijarei a tua face;
e o beijo levar-nos-á ao jogo de amar.

Dá-me a mão que iremos pela margem
     mesmo à beira-mar
                                 a latejar
saberemos a medida de todas as coisas
dizendo apenas que ainda nos amamos.




Joan Salvat-Papasseit
Espanha, 1894-1924
in resistir ao Tempo - Antologia da Poesia Catalã
Editor: Assírio & Alvim
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11 de junho de 2022

Padre Fábio de Melo: A vida requer cuidado...

 

A vida requer cuidado. Os amores também. 
Flores e espinhos são belezas que se dão juntas. 
Não queira uma só, elas não sabem viver sozinhas…
Quem quiser levar a rosa para sua vida, 
terá de saber que com elas vão inúmeros espinhos. 
Não se preocupe, a beleza da rosa vale o incômodo 
dos espinhos…




Padre Fábio de Melo
Brasil, 1971
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10 de junho de 2022

Guillermo Valencia: À Memória de Josefina


                       I

Do que foi um amor, uma doçura
sem par, feita de sonho e de alegria,
ficou apenas a cinza fria
que retém esta pálida cobertura.

A orquídea de fantástica formosura,
a borboleta na sua policromia
entregaram a sua fragância e galhardia
ao fado que fixou a minha desventura.

Sobre o olvido minha lembrança impera;
do seu sepulcro minha dor arranca;
minha fé reclama, minha paixão a espera,

e devolvo-a à luz, com essa franca
alegria matinal de primavera:
Nobre, modesta, carinhosa e branca!

                      II

Que te amei, sem rival, tu o soubeste
e o sabe o Senhor; nunca se liga
a erradia hera à floresta amiga
como se uniu teu ser à minha alma triste.

Na minha memória teu viver persiste
com o doce rumor de uma cantiga,
e a nostalgia do teu amor mitiga
minha pena, que ao ouvido resiste.

Diáfano manancial que não se esgota,
vives em mim, e à minha aridez austera
tua frescura se mistura, gota a gota.

Foste no meu deserto palmeira a crescer,
no meu pélago amargo, voo de gaivota,
e só morrerás quando eu morrer.




Guillermo Valencia
Colômbia, 1873-1943
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José Asunción Silva: O mal do século



O doente:
Doutor, um desalento da vida
que no meu íntimo se enraíza e nasce,
o mal do século... o mesmo mal de Werther,
de Rolla, de Manfredo e de Leopardi.
Um cansaço de tudo, um absoluto
desprezo pelo humano... um incessante
renegar do vil da existência
digno do meu mestre Shopenhauer;
um mal-estar profundo que vai crescendo
com todas as torturas da análise...

O Médico:
-- Isso é uma questão de regime: caminhe
pela manhãzinha; durma bem; tome banho;
beba à vontade; coma melhor; muito cuidado consigo:
O que você tem é fome...!




José Asunción Silva
Colômbia, 1865-1896
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9 de junho de 2022

Olavo Bilac. Satânia

 

Nua, de pé, solto o cabelo às costas,
Sorri. Na alcova perfumada e quente,
Pela janela, como um rio enorme
De áureas ondas tranquilas e impalpáveis
Profusamente a luz do meio-dia
Entra e se espalha palpitante e viva.
Entra, parte-se em feixes rutilantes,
Aviva as cores das tapeçarias,
Doura os espelhos e os cristais inflama.
Depois, tremendo, como a arfar, desliza
Pelo chão, desenrola-se, e, mais leve,
Como uma vaga preguiçosa e lenta,
Vem lhe beijar a pequenina ponta
Do pequenino pé macio e branco.
Sobe... cinge-lhe a perna longamente;
Sobe... -- e que volta sensual descrevo
Para abranger todo o quadril -- prossegue,
Lambe-lhe o ventre, abraça-lhe a cintura,
Morde-lhe os bicos túmidos dos seios,
Corre-lhe a espádua, espia-lhe o recôncavo
Da axila, acende-lhe o coral da boca,
E antes de se ir perder na escura noite,
Na densa noite dos cabelos negros,
Para confusa, a palpitar, diante
Da luz mais bela dos seus grandes olhos.
E aos mornos beijos, às carícias ternas
Da luz, cerrando levemente os cílios,
Satânia os lábios úmidos encurva,
E da boca na púrpura sangrenta
Abre um curto sorriso de volúpia...
Corre-lhe à flor da pele um calefrio; 
Todo o seu sangue, alvoroçado, o curso
Apressa; e os olhos, pela fenda estreita
Das abaixadas pálpebras radiando,
Turvos, quebrados, lânguidos, contemplam,
Fitos no vácuo, uma visão querida...

Talvez ante eles, cintilando ao vivo
Fogo do ocaso, o mar se desenrole:
Tingem-se as águas de um rubor de sangue,
Uma canoa passa... Ao largo oscilam
Mastros enormes, sacudindo as flâmulas...
E, alva e sonora, a murmurar, a espuma
Pelas areias se insinua, o limo
Dos grosseiros cascalhos prateando...
Talvez ante eles, rígidas e imóveis,
Vicem, abrindo os leques, as palmeiras:
Calma em tudo. Nem serpe sorrateira
Silva, nem ave inquieta agita as asas.
E a terra dorme num torpor, debaixo
De um céu de bronze que a comprime e estreita...

Talvez as noites tropicais se estendam
Ante eles: infinito firmamento,
Milhões de estrelas sobre as crespas águas
De torrentes caudais, que, esbravejando,
Entre altas serras surdamente rolam...
Ou talvez, em países apartados,
Fitem seus olhos uma cena antiga:
Tarde de outono. Uma tristeza imensa
Por tudo. A um lado, à sombra deleitosa
Das tamareiras, meio adormecido,
-- Fuma um árabe. A fonte rumoreja
Perto. À cabeça o cântaro repleto,
Com as mãos morenas suspendendo a saia,
Uma mulher afasta-se, cantando...
E o árabe dorme numa densa nuvem
De fumo... E o canto perde-se à distância...
E a noite chega, tépida e estrelada...

Certo, bem doce deve ser a cena
Que os seus olhos extáticos ao longe,
Turvos, quebrados, lânguidos, contemplam,
Há pela alcova, entanto, um murmúrio
De vozes. A princípio é um sopro escasso,
Um sussurrar baixinho... Aumenta logo:
É uma prece, um clamor, um coro imenso
De ardentes vozes, de convulsos gritos.
É a voz da carne, é a voz da Mocidade,
-- Canto vivo de força e de beleza,
Que sobe desse corpo iluminado...
Dizem os braços: «Quando o instante doce
Há de chegar, em que, à pressão ansiosa
Destes laços de músculos sadios,
Um corpo amado vibrará de gozo?»
E os seios dizem: «Que sedentos lábios,
Que ávidos lábios sorverão o vinho
Rubro, que temos nestas cheias taças?
Para essa boca que esperamos, pulsa
Nestas carnes o sangue, enche estas veias,
E entesa e apruma estes rosados bicos...»
Em que meus lábios possam ser beijados,
Mais que beijados: possam ser mordidos!»

....................................................................

Mas, quando, enfim, das regiões descendo
Que, errante, em sonhos percorreu, Satânia
Olha-se, e vê-se nua, e, estremecendo,
Veste-se, e aos olhos ávidos do dia
Vela os encantos, -- essa voz declina
Lenta, abafada, trêmula...

Um barulho
De linhos frescos, de brilhantes sedas
Amarrotadas pelas mãos nervosas,
Enche a alcova, derrama-se nos ares...
E, sob as roupas que a sufocam, inda
Por largo tempo, a soluçar, se escuta
Num longo choro a entrecortada queixa
Das deslumbrantes carnes escondidas...




Olavo Bilac
Brasil, 1865-1918
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7 de junho de 2022

Guimarães Passos: Temperatura

Mais macambúzio que aflito,
Mais intrigado que triste,
Salta de casa o Benedito,
Anda, volta e não resiste,

Entra feito, como um fuso,
Num consultório: «Doutor,
Desculpe-me... estou confuso,
Mas faça sempre o favor,

Explique-me esse mistério:
Eu sou casado há trinta anos;
Sou homem, como vê, sério,
Mas tem a vida uns enganos...

Minha mulher é supimpa,
Muito meiga, muito boa,
Muito dócil, muito limpa,
E é dessas que não têm proa.

Quando eu a vejo de frente
Até me parece fria,
Mas é mais que o inferno quente
Quando de costas me espia...

Pela frente é uma geleira,
Até maleitas me faz,
E é como uma frigideira
Dentro do fogo, por trás».

O doutor olha-o sereno,
Mas a explicar não se anima
Como em tão curto terreno,
É tão diferente o clima.




Guimarães Passos
Brasil, 1867-1909
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Guimarães Passos: Opiniões

 

Um filósofo dizia
A um seu amigo querido,
Que jamais compreendia
Como um amante queria
Sempre o gozo repetido.

-- «É um abuso! E eu sempre vejo
A mesma coisa gozada
Ter sempre maior desejo,
Pois se o beijo é o mesmo beijo,
O beijo não vale nada...

Onde está a novidade?
O que ontem foi, hoje é.
Falo com sinceridade:
Não compreendo a vontade...
Você que diz, seu José?»

Diz o outro: «-- Seu Raimundo,
Cada qual tem sua norma
de gozar por este mundo:
A mesma coisa no fundo,
É diferente na forma».




Guimarães Passos
Brasil, 1867-1909
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Cruz e Souza: Encarnação

 

Carnais, sejam carnais tantos desejos,
carnais, sejam carnais tantos anseios,
palpitações e frêmitos e enleios,
das harpas da emoção tantos arpejos...

Sonhos, que vão, por trêmulos adejos,
à noite, ao luar, intumescer os seios
láteos, de finos e azulados veios
de virgindade, de pudor, de pejos...

Sejam carnais todos os sonhos brumos
de estranhos, vagos, estrelados rumos
onde as visões do amor dormem geladas...

Sonhos, palpitações, desejos e ânsias
formem, com claridades e fragâncias,
a encarnação das lívidas Amadas!




Cruz e Sousa
Brasil, 1861-1898
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Leandro Gomes de Barros: Qual será o beco estreito

 

          MOTE

Qual será o beco estreito
que três não podem cruzar?
só entra um, ficam dois,
ajudando a trabalhar!

          GLOSA

Frei Bedegueba dizia
a Frei Manzapo, em disputa:
-- Existe uma certa gruta
onde hei de ter moradia.
Hei de conhecê-la um dia,
embora quebre o Preceito.
Vou penetrá-la direito,
para a verdade saber,
pois preciso conhecer
qual será o beco estreito.

Dizem que tem pouca altura
e fica no pé dum Monte.
A entrada é uma Fonte:
vou medir sua largura!
Para saber-lhe a fundura
vou lá dentro mergulhar.
Para me certificar,
não podendo entrar os três,
só entra o Cabo-pedrês,
que três não podem cruzar.

Um padre já me contou
que foi dar uma caçada
e, nessa Mata fechada,
viu um Bicho e não matou!
De dentro, uma Voz gritou:
-- Padre, dizei-me quem sois!
Podereis entrar depois,
respondendo ao que pergunto:
mas, dos três que vejo juntos,
só entra um, ficam dois!

Um Monge de lisa fronte,
também já contou a mim:
-- Já brinquei nesse Capim,
já ressonei nesse Monte!
Quase sempre a essa Fonte
venho eu e mais um Par:
os dois não podendo entrar,
por serem moles e bambos,
eu entro só, ficam ambos
ajudando a trabalhar!




Leandro Gomes de Barros
Brasil, 1868-1918
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Olavo Bilac: Ela

 
Maria tem vinte amantes!
Uns tortos, outros direitos;
Todos eles são galantes,
Todos vivem satisfeitos...


Mulher de recursos fartos!
Como é que esta impenitente,
Tendo no corpo dois quartos,
Dá pousada a tanta gente?




Olavo Bilac
Brasil, 1868-1918
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Olavo Bilac: Conto

 
Zé Borrasca, embarcadiço,
Que não tem medo da morte
Parte, e sem chorar por isso,
Chorando deixa a consorte.

Cruza terra e oceanos,
Correndo perigos mil,
E, ao fim de dois longos anos,
Chega de volta ao Brasil.

Chega pronto a dar abraços,
E beijos... Mas, espantado,
Acha, da mulher nos braços,
Um bebê gordo e corado.

«Senhora!» -- e no olhar o brilho
Tem de um Otelo feroz...
«A quem pertence este filho,
Senhora?» -- E treme-lhe a voz...

Chora a sogra... A mulher chora...
Mas Borrasca não descansa:
«Senhora! fale, senhora!
Quem é o pai da criança?!»

Responde a mulher aos brados,
Mostrando o filhinho nu:
«Pois nós somos casados,
Ó Borrasca! o pai és tu...»

«Eu, senhora? mente! mente!
Nem esta coisa tem jeito!
Dois anos estive ausente
Da minha pátria e do leito!...»

E ela: «Existem tais enganos!
Tantos enganos já vi!...
Quem sabe se lá os anos
não são mais longos que aqui?...»




Olavo Bilac
Brasil, 1865-1918
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Anónimo: A corda Sensível

 
Da sorte aos acasos nada é impossível
E tudo de amor se deve esperar,
Porque das mulheres -- a corda sensível
Mais tarde ou mais cedo se sente vibrar.

É sempre a loureira em tudo acessível
A todos aqueles que bem podem dar;
O fraco lhe movem, a -- corda sensível,
O carro, o vestido, o brinco, o colar.

A gata burguesa é mais suscetível,
Com certa reserva se faz respeitar;
Se dão-lhe, porém, na -- corda sensível
Assim como vive se deixa levar.

A nobre fidalgo se mostra inflexível
Brasões e grandezas querendo mostrar,
Mas cede ao vibrado da -- corda sensível
Folia, brinquedo, passeio ou jantar.

A bela criada, se está disponível,
Na casa dos amos quer brios mostrar;
Ao toque, porém, da -- corda sensível,
Por dádiva simples se deixa levar,

A sonsa beata, na igreja infalível,
Que em Deus só parece rezando pensar,
Ao simples vibrado da -- corda sensível
Nem mais um momento se ocupa em rezar.

À pura inocência, empresa é temível
Fazê-la de amores nas lutas entrar,
Porque ninguém sabe da -- corda sensível
No peito inocente onde é o lugar.

Contudo na terra nada é impossível
E tudo de amor se deve esperar,
Porque das mulheres a -- corda sensível
Mais tarde ou mais cedo se sente vibrar.




Anónimo
Brasil,
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Vicente de Carvalho: Visão Negra

 

Eu penso muita vez em ti que já morreste,
Deliciosa mulher que tanto amei um dia
E que dormes agora em baixo do cipreste,
na funérea mudez da sepultura fria.

Em ti, por quem outrora ardente eu desfolhava
A grinalda de luz dos vívidos desejos,
E em derredor de quem famélico esvoaçava
-- Palpitante e febril -- o enxame de meus beijos.

E julgo ver então -- negra quimera informe --
Erguer-se do sepulcro em que teu corpo dorme
Uma ossada asquerosa, e vir oferecer-me

A meus beijos, um rosto esburacado, infecto,
Onde cevou-se a boca esquálida do verme...
-- E a um cadáver de amor, o amor de um esqueleto.





Vicente de Carvalho
Brasil, 1866-1924
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6 de junho de 2022

Anónimo: É tão bom, não dói nem nada

 

Minha doce iaiazinha,
Quando está toda enfadada
Dá pancadinhas na gente...
É tão bom, não dói, nem nada.

Gosto dela só por isso,
Que a pancada tem feitiço.

Às vezes bulo com ela
Para vê-la amofinada,
Me dá, me puxa os cabelos
É tão bom, não dói, nem nada.

Gosto dela só por isso,
Que pancada tem feitiço.

Ontem brincando comigo
Me pregou uma dentada,
Exclamei, mesmo ferido,
É tão bom, não dói, nem nada.

Gosto dela só por isso,
Que a pancada tem feitiço.

Um dia dando-lhe um beijo
Pôs-me a língua ensanguentada,
Então me rindo lhe disse --
É tão bom, não dói, nem nada.

Gosto dela só por isso,
Que a pancada tem feitiço.




Anónimo 
Brasil,
in Antologia da Poesia Erótica Brasileira
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5 de junho de 2022

Anónimo: A mulata cor de jambo


Derreto-me, babo-me todo
Pela mulata cor de jambo;
Se a vejo, não me acomodo
Té fico das pernas bambo!

E, então ela me ousa
Um terno olhar despedir,
Fico eu qual mariposa,
Estou em chama a cair!

Tem tal feitiço a mulata,´
É tão grata a sua cor,
Qu'ão vê-la, fica em cascata
Minha testa, com o suor!...

Se ela diz-me: -- «yôyô,
Gosto munto di vossê;»--
Enlevado às nuvens vou,
Caio na terra de pé!

Se arrasta o chinelinho
da cidade pelas ruas,
Não sossego um instantinho,
Lá ando nas águas suas!

Inda se vejo ela ir
se mexendo, e a gingar;
Fico eu quase a dormir,
Vou pra casa me deitar.
 
Um dia, como, não sei;
Ela caiu-me nas unhas,
Gritou logo: -- Aqui del-rei,
Tomou suas testemunhas!

Tive por fim de largá-la
Pra não ir para o chilindró;
Mas vivo sempre a chorá-la,
pela mulata tenho dó!

Derreto-me, babo-me todo
Pela mulata cor de jambo;
Se a vejo, não me acomodo
Té fico das pernas bambo!




Anónimo
Brasil
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Olegário Mariano: Dona Boa

 

Dona Boa sai à rua.
Faz um dia de garoa...
Que toilette! Quase nua
          Dona Boa

Pisa de leve... tique taque...
Às vezes, nem pisa, voa...
Que assombro! Sempre em destaque
          Dona Boa...

No Flamengo. Quando chega
e o chambre desabotoa,
para o trânsito. É uma grega
         Dona Boa...

Espreguiça-se, arredonda
o corpo se aperfeiçoa.
E vai calmamente na onda
         Dona Boa...

E sobe e desce... No arranco
da vaga se amontoa,
levanta um braço. Que branco
        o braço de Dona Boa!

Toma chá no Renaissance,
com torradas de Lisboa...
Tão boa para um romance
          tão Boa...

No cinema. A orquestra louca
Num rag-time se esboroa...
Ela abre um sorriso... Que boca
          tem Dona Boa!

No Palace. O Cipriano
Fidalgamente abordou-a
e apresentou-nos: «Fulano
          e Dona Boa...»

Fiquei frio. Deu-me a breve
mão; o meu lábio beijou-a.
Como é delicioso e leve
         o cheiro de Dona Boa!

Disse eu logo um galanteio...
Riu num riso que atraiçoa.
Caía um lírio do seio
          de Dona Boa.




Olegário Mariano
Brasil, 1889-1958
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