Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

28 de abril de 2014

António Ramos Rosa: É por ti que escrevo




É por ti que escrevo que não és musa nem deusa
mas a mulher do meu horizonte
na imperfeição e na incoincidência do dia-a-dia
Por ti desejo o sossego oval
em que possas identificar-te na limpidez de um centro
em que a felicidade se revele como um jardim branco
onde reconheças a dália da tua identidade azul
É porque amo a cálida formosura do teu torso
a latitude pura da tua fronte
o teu olhar de água iluminada
o teu sorriso solar
é porque sem ti não conheceria o girassol do horizonte
nem a túmida integridade do trigo
que eu procuro as palavras fragrantes de um oásis
para a oferenda do meu sangue inquieto
onde pressinto a vermelha trajectória de um sol
que quer resplandecer em largas planícies
sulcado por um tranquilo rio sumptuoso



António Ramos Rosa
Portugal (Faro) 1924-2013
in O teu rosto
Editor: Edições Asa

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27 de abril de 2014

António Ramos Rosa: Para Agripina


Amanheceu a minha vida no teu rosto
de uma doçura intensa e tão suave
como se um divino fundo nele brilhasse
Eu era o que nascia soberanamente leve
e encontrava na limpidez centro do equilíbrio
Só em ti cheguei amanhecendo
na minha madurez. Entrei no templo
em que a luz latente era a secreta sombra
Foste sonhada por meus olhos e minhas mãos
por minha pele e por meu sangue
Se o dia tem este fulgor inteiro é porque existes
E é porque existes que se levanta o mundo
em quotidianos prodígios
em que ao fundo brilha o horizonte certo.


António Ramos Rosa
Portugal (Faro) 1924-2013
in O teu rosto
Editor: Edições Asa
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António Ramos Rosa: Não posso adiar o amor




















Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o rneu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração


António Ramos Rosa
Portugal (Faro) 1924-2013
in Antologia Poética
Editor: D. Quixote

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António Ramos Rosa: Poema dum funcionário cansado


A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só


António Ramos Rosa
Portugal (Faro) 1924-2013
in Antologia Poética
Editor: D. Quixote
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António Ramos Rosa: Cabelos




Cabelos são os teus cabelos as tuas mãos
e que sinais de perfeição tão triste
que doçura do espírito da terra
que suavidade do espírito da água

Ombros seios umbigo velo sexo
tudo velado pelo ouro da sombra
da castidade ardente honra da carne
honra de amor para o que a conhecer


António Ramos Rosa
Portugal (Faro) 1924-2013
in 366 poemas que falam de amor
Org: Vasco Graça Moura
Editor: Quetzal 
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António Ramos Rosa: A mulher A casa



A casa é viva
(A mulher dorme)
Dorme na espuma
nas cores puras
Dorme na espuma do silêncio

Planos brancos
e cores lisas

Dorme no vidro
tranquilo

Dorme viva

A casa é branca
É mais branca no silêncio
É mais branca entre as árvores

A própria cidade é branca


A cabra
cheirou a casa
cheirou o branco

O puro nó
do silêncio

Chego em silêncio
à mulher viva
dormindo

A casa é ela
em espiral
rodando
branca

É fino o ar
quase sem pó
uma árvore dá
uma curta sombra

Uma brisa lava
a casa fresca

A varanda nua
é seca e branca
com sede de mar

A caranda é nua
a mulher é nua

Da casa branca
vê-se o mar
o fulvo dorso
da praia
nu
mulher de areia
deitada e panda
na frescura azul

Uma vela branca
de minúcia fresca

dá ao olhar a brisa

dá ao silêncio o mar

A mulher dorme
viva
na espuma

do silêncio


António Ramos Rosa
Portugal (Faro) 1924-2013
 in Antologia Poética
Editor: Publicações D. Quixote
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António Ramos Rosa: Procuro no corpo uma gentileza nova



Procuro no corpo uma gentileza nova
a garua pardente de um pesado rochedo
envolto em longos enrolados e sedosos cabelos
É a densa divindade a divindade leve
dádiva de um firmamento submerso de selvagem suavidade
para além do tumultuoso desastre e da violência dos monstros
Eurídice num barco obscuro com o seu rosto de lua
sobre o seu túmulo branco entre a sombra e o canto
oferece o torso vegetal e o seu seu sombrio sangue
entre nostálgicos murmúrios e voluptuosos queixumes
Ela é a rocha a sombra adormecida
no vermelho silêncio do meu corpo ancestral
e só ela pode dar um rosto eterno ao mar
É ela que se ergue e se estende na praia
desta página aberta ao seu divino corpo
E eu que sou eu senão o seu amante
que vive do seu sopro que bebe o seu silêncio



António Ramos Rosa
Portugal (Faro) 1924-2013
in Os animais do Sol e da Sombra seguido de O Corpo Inicial
Editor: Quasi Edições
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