Separo-me de ti nos solstícios de verão, diante da
mesa do juiz supremo dos amantes.
Para que os juízes me possam julgar, conhecerão
primeiro o amor desonesto infinito
feito de marés ambulantes de espinhos nas pálpebras
onde as ruas são os pontos únicos
do furor erótico e onde todos os pontos únicos do
amor são ruas estreitíssimas velocíssimas
que se percorrem como um fio de prumo sem
oscilação.
Ontem antes de ontem antes de amanhã antes de hoje
antes deste número-tempo
deste número-espaço uma boca feita de lábios
alheios beijou.
Precipício aberto: ele nada revela que tu já não
saibas.
Porque este contágio de precipícios foste tu que mo
comunicaste
maléfico como um pássaro sem bico.
Num silêncio breve vestiu-se a cidade.
Muito bom-dia querido moribundo. Sozinho declaraste
a terceira grande paz mundial
quando abrindo os olhos me deste de comer
cronometricamente às mil e tantas horas
da manhã de hoje.
Deito-me cedo contigo o meu sono é leve para a
liberdade acordas-me só de pensares nela.
As casas e os bichos apoiam-se em ti. Não fujas não
te mexas:
vou fixar-te para sempre nessa posição.
Que há? Abrem-se fendas no ar que respiro vejo-lhe
o fundo. Tens os olhos vazados.
Qual de nós os dois "quero-Te" gritou?
Bebe-me espaçadamente encostada aos muros. Se és
poeta que fazes tu?
Comes crianças jogas ases sentado és uma estátua de
pé a cauda de um cometa.
Mães entretanto vão parindo. Os filhos morrerão
ainda? Entregas-te a cálculos.
Amas-me demais.
Confesso: não sei se sou amada por ti.
Virás
quando houver uma fala indestrutível devolvida à
boca dos mais vivos. Então virás vivo também.
Sempre esperei ver-te ressuscitado.
Desiludiste-me.
E iremos com o plural de nós nos leitos menores
onde o riso, onde o leito do rio
é um filho entre os dois. Que farei de teus braços
de meus cabelos benignos que faremos?
Nasci-te da minha pele com algumas fêmeas te deitei
por vezes. Conheces-me.
Não me tens amor.
Grave esta corda cortada agudo seixo me ataste aos
olhos para me afundar.
Só por grande angústia me condenas à morte se de
mim te veio a cidade
e os minúsculos objectos que já amaste ou que irás
amar um dia espero.
Ah a cratera o abismo eléctrico!
Por isso o teu novo amor será comigo mais perigoso
que este imaculado com mais visco de amor cópula
mortal.
Calo-me.
Reparei de repente que não estavas aqui. Pus-me a
falar a falar.
Coisas de mulher desabitada. Sei que um dia
desviarei sem ti os passeios rectos
esvaziarei os gordos manequins falantes. A razão é
uma chapa de ferro ao rubro:
se acredito na tua morte começo o suicídio.
Enquanto penetrantemente te espero a luz coalhou.
Os pássaros coalharam enquanto te espero.
O leite enquanto te espero coalhou. Haverá outro
verbo?
Submersa, muito distante de qualquer inferno de um
paraíso qualquer existo eu.
Existirão tais palavras?
É a altura de escrever sobre a espera. A espera tem
unhas de fome, bico calado,
pernas para que as quer. Senta-se de frente e de
lado em qualquer assento.
Desça com o sono a cabeça de animal exótico
enquanto os olhos se fixam
sobre a ponta do meu pé e principiam um movimento
de rotação
em volta de mim em volta de mim de ti.
Nunca te conheci - assim explico o teu
desaparecimento.
Ou antes: separei-me de ti no solstício de um verão
ultrapassado .
As mulheres viajavam pela cidade completamente nuas
de corpo e espírito.
Os homens mordiam-se com cio. Imperturbável
pertenceste-me.
Assim nos separámos.
Não calhasse morrer um de nós primeiro que o outro
porque ambos ao mesmo tempo
será impossível enquanto não houver relógios que
meçam este tempo
e as horas fielmente se adiantarem e atrasarem.
Alguma vez pretendi dizer-te o que quer que fosse?
Falava por paixão por tibieza por desgosto por
claridade por frio por cansaço
nunca por pretender dizer o que quer que fosse.
Não me desculpo. Se já me cai o cabelo se já não
sinto os ombros
é porque o amor é difícil ou a minha cabeça uma
pedra escura
que carrego sobre o corpo a horas e desoras
ostentando-a como objecto público sagrado
purulento.
O odor que as pedras têm quando corpos.
O apocalipse de tudo quando amamos.
O nosso sangue em pó tornado entornado.
O teu amor espreita o meu corpo de longe. De longe
por gestos lhe respondo.
Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos
reclusos beijos nos dentes.
A pobreza surge dentro de nós embora cautelosos
deitados de manhã e de tarde
ou simplesmente de noite despertos.
Ambos meu amigo estamos sentados neste momento
perfeitamente incautos já.
Contemplamos um país e sentamo-nos e vestimo-nos e comemos
e admiramos os monumentos e morremos.
Inventei a nossa morte em toda a impossível
extensão das palavras.
Aterrorizei-me segundos a fio enquanto em corpo nu
ouvindo-me adormecias devagar.
Com a precaução de quem tem flores fechadas no
peito passeei de noite pela casa.
Um fantasma forçou uma porta atrás de mim. Gemendo
como um animal estrangulado
acordei-te.
Enterro o meu terror como um alfange na terra.
Porque é preciso ter medo bastante para correr
bastante toda a casa
celebrar bastantes missas negras atravessar
bastante todas as ruas
com demónios privados nas esquinas.
Só o amor tem uma voz e um gesto mesmo no rosto da
ideia que me impus da morte.
És tu tão único como a noite é um astro.
Sobre a poeira que te cobre o peito deixo o meu cartão
de visita
o meu nome profissão morada telefone.
Disse-te: Eis-me.
E decepei-te a cabeça de um só golpe.
Não queria matar-te. Choro. Eis-me! Eis-me!
Luiza Neto Jorge
Portugal (Lisboa) 1939-1989
in Poesia 1960-1989
Editor: Assirio & Alvim
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