̶ Corrijamos
o teu estilo, minha plácida Ana, dizia Camilo.
Ana enchia duas tijelas com tinta vermelha.
«O sangue dos teus
cães». Nas escadas, Jorge uivava. Camilo
acendia o charuto de
Ana e deitava as mãos aos olhos. ̶ O fumo, não suporto o fumo.
Estendia os braços para uma resma de papéis. ̶ Saiam, saiam!,
gritava não se sabe a quem, não se sabe
porquê. Ana despia-se:
escrevo melhor, Camilo. Jorge subia à árvore
frondosa, sob a qual
um cavalo arreado esperava. As mais vulgares
suposições do seu
cérebro interrompido realizavam-se
subitamente. Era um pássaro,
era um corvo. Levava a mão ao ouvido direito
e ouvia o mar.
Olhava o umbigo e via o infinito. Ana, nua,
ia para baixo da
árvore e montava no cavalo. ̶ Esporeio-te de romântica convicção.
A própria música do vento adquirira esse
aspecto trágico do amor
irrealizado. Mas se tudo se interrompesse ,
se a terra interrompesse
o seu curso, repetia Camilo. Nada, ainda, se
verificava pela primeira
vez. Um vago desejo de nada entrava no jogo
de possibilidades
formulado por Jorge. ̶ Pai, pai, o estranho apelo desse teu mundo
perturba-me e dói-me. Via Camilo, de mãos nos
ouvidos a esvair-se
em sangue. Não precipitei o teu tiro final,
dizia Ana à beira do corpo.
̶
Fez-se a tragédia. Antes ouviu-se o choro de duas mulheres. Pouco
depois, um navio sulcava o campo. ̶ Ó sangrento arado, disse Jorge.
Nuno Júdice
Portugal (Mexilhoeira Grande, Algarve) 1949
in Obra Poética (1972-1985)
Editor: Quetzal Editores
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