Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

9 de abril de 2014

Nuno Júdice: Camiliana noite


̶  Corrijamos o teu estilo, minha plácida Ana, dizia Camilo.
Ana enchia duas tijelas com tinta vermelha. «O sangue dos teus
cães». Nas escadas, Jorge uivava. Camilo acendia o charuto de
Ana e deitava as mãos aos olhos. ̶  O fumo, não suporto o fumo.
Estendia os braços para uma resma de papéis. ̶  Saiam, saiam!,
gritava não se sabe a quem, não se sabe porquê. Ana despia-se:
escrevo melhor, Camilo. Jorge subia à árvore frondosa, sob a qual
um cavalo arreado esperava. As mais vulgares suposições do seu
cérebro interrompido realizavam-se subitamente. Era um pássaro,
era um corvo. Levava a mão ao ouvido direito e ouvia o mar.
Olhava o umbigo e via o infinito. Ana, nua, ia para baixo da
árvore e montava no cavalo. ̶  Esporeio-te de romântica convicção.
A própria música do vento adquirira esse aspecto trágico do amor
irrealizado. Mas se tudo se interrompesse , se a terra interrompesse
o seu curso, repetia Camilo. Nada, ainda, se verificava pela primeira
vez. Um vago desejo de nada entrava no jogo de possibilidades
formulado por Jorge. ̶  Pai, pai, o estranho apelo desse teu mundo
perturba-me e dói-me. Via Camilo, de mãos nos ouvidos a esvair-se
em sangue. Não precipitei o teu tiro final, dizia Ana à beira do corpo.
̶  Fez-se a tragédia. Antes ouviu-se o choro de duas mulheres. Pouco
depois, um navio sulcava o campo. ̶  Ó sangrento arado, disse Jorge.


Nuno Júdice
Portugal (Mexilhoeira Grande, Algarve) 1949
in Obra Poética (1972-1985)
Editor: Quetzal Editores
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