Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

31 de outubro de 2011

Seus olhos : Almeida Garret

Seus olhos – se eu sei pintar
O que os meus olhos cegou –
Não tinham luz de brilhar.
Era chama que queimar;
E o fogo que a ateou
Vivaz, eterno, divino,
Como facho do destino.

Divino, eterno! – e suave
Ao mesmo tempo: mas grave
E de tão fatal poder,
Que, um só momento que a vi,
Queimar toda a alma senti…
Nem ficou mais de meu ser,
Senão a cinza em que ardi.




Almeida Garret

(Portugal 1799-1854)
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30 de outubro de 2011

Leito de flores : Alvares de Azevedo


Pálida à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar, na escuma fria
Pela maré das águas embalada?
Era um anjo entre nuvens d’alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela, o seio palpitando…
Negros olhos as pálpebras abrindo…
Formas nuas no leito resvalando…

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti – as noites eu velei chorando,
Por ti – nos sonhos morrerei sorrindo.

Alvares Azevedo
(Brasil 1831-1852)
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Al Berto: No centro da cidade...


(… no centro da cidade, um grito. Nele morrerei,
escrevendo o que a vida me deixar. Eu sei que
cada palavra escrita é um dardo envenenado, tem a
dimensão de um túmulo, e todos os teus gestos são
uma sinalização em direcção à morte (…)
Mas hoje, ainda longe daquele grito, sento-me
na fímbria do mar. Medito o meu regresso.
Possuo para sempre tudo o que perdi. E uma abelha
pousa no azul do lírio, e no cardo que sobreviveu à
geada. (… Bebo, fumo, nau tenho-me atento, absorto
- aqui sentado junto à janela fechada. Ouço-te
ciciar amo-te pela primeira vez, e na ténue luminosidade
que se recolhe ao horizonte acaba o corpo.
Recolho o mel, guardo a alegria e digo-te baixinho.
Apaga as estrelas, vem dormir comigo
no esplendor da noite do mundo que
nos foge.

Al Berto – Lunário (exerto)
(Portugal 1948-1997)
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Como te amo? : Elizabeth Barrett Browning


Como te amo? Deixa-me contar de quantas maneiras.
Amo-te até ao mais fundo, ao mais amplo e ao
mais alto que a minha vida pode alcançar
buscando, para além do visível os limites do
Ser e da Graça ideal.
Amo-te até às mais ínfimas necessidades de
todos os dias à luz do sol e à luz das velas.
Amo-te com liberdade, enquanto os homens
lutam pela justiça;
Amo-te com pureza, enquanto se afastam da lisonja.
Amo-te com a paixão das minhas velhas mágoas
e com a fé da minha infância.
Amo-te com um amor que me parecia perdido
quando perdi os meus santos – amo-te com
o fôlego, os sorrisos, as lágrimas de toda a
minha vida! – e, se Deus quiser,
amar-te-ei melhor depois da morte.

Elizabeth Barrett Browning
(England 1806-1861)

A nossa casa : Florbela Espanca


A nossa casa, Amor, a nossa casa!
Onde está ela, Amor, que não a vejo?
Na minha doida fantasia em brasa
Constrói-a, num instante, o meu desejo!

Onde está ela, Amor, a nossa casa,
O bem que neste mundo mais invejo?
O brando ninho aonde o nosso beijo
Será mais puro e doce que uma asa?

Sonho…que eu e tu, dois pobrezinhos,
Andamos de mãos dadas, nos caminhos
Duma terra de rosas, num jardim,

Num país de ilusão que nunca vi…
E que eu moro - tão bom - dentro de ti
E tu ó meu Amor, dentro de mim…

Florbela Espanca - Sonetos

(Portugal 1894-1930)

Tristão : August Graf Von Platen





Quem olhou a beleza bem no fundo,
À morte logo se foi entregar;
Não serve para as tarefas deste mundo,
Mas ante a morte irá estremecer
Quem olhou a beleza neste mundo!

Eterna é para ele a dor de amar,
Pois nesta terra só um louco espera
A um apelo assim corresponder:
Aquele a quem do belo a seta fere
eterna é para ele a dor de amar!

Ah, como a fonte desejara secar,
Sorver veneno em cada sopro mundo
E em cada flor essa morte cheirar:
Quem olhou a beleza bem no fundo,
Ah, como a fonte desejara secar!

August Graf Von Platen
(Germany 1796-1835)

28 de outubro de 2011

Todo o saber que eu tinha andava... : Gottfried Keller


Todo o saber que eu tinha andava em minha trança
Toda a minha ciência, em meus lábios vermelhos,
E todo o meu poder, nessa água que descansa
Dos meus olhos no fundo azul, de claro espelho.

Cem discípulos vi desta boca suspensos,
Presos de meus cabelos em tão sábios anéis;
Cem súbditos possuí, de meus olhos imensos
Desejando um clarão como escravos fiéis.

Pende agora, mortal, meu cabelo, coitado!
Como vela no mar quando a brisa não vem,
E sinto o coração no corpo abandonado
Qual pêndula a bater num quarto sem ninguém.

Gottfried Keller
(Switzerland 1819-1890)
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Soneto : E. E. Cummings


Não será sempre assim… Quando não for,
Quando teus lábios forem de outro; quando
No rosto de outro o teu suspiro brando
Soprar; quando em silêncio, ou no maior

Delírio de palavras desvairando,
Ao teu peito o estreitares com fervor;
Quando, um dia, em frieza e desamor
Tua afeição por mim se for trocando:

Se tal acontecer, fala-me. Irei
Procurá-lo, dizer-lhe num sorriso:
«Goza a ventura de que já gozei.»

Depois, desviando os olhos de improviso,
Longe, ah tão longe, um pássaro ouvirei
Cantar no meu perdido paraíso.

E. E. Cummings
(U.S.A. 1894-1962)
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27 de outubro de 2011

Horas rubras : Florbela Espanca


Horas profundas, lentas e caladas,
Feitas de beijos sensuais e ardentes,
De noites de volúpia, noites quentes
Onde há risos de virgens desmaiadas…

Ouço as olaias rindo desgrenhadas…
Também os astros em fogo, astros dementes.
E do luar os beijos languescentes
São pedaços de prata pelas estradas…

E os meus lábios são brancos como lagos…
Os meus braços são leves como afagos,
Vestiu-se o luar de sedas puras…

Sou chama e neve branca e misteriosa…
E sou, talvez, na noite voluptuosa,
Ó meu poeta, o beijo que procuras!

Florbela Espanca
(Portugal 1894-1930)
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26 de outubro de 2011

David Mourão-Ferreira: Soneto cativo


Se é sem duvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias,
tão longe da verdade e da invenção;

o espelho deformante, a profusão
de frases insensatas, incesórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que os outros dirão ou não dirão;

se é sem duvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;

não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!

David Mourão-Ferreira
(Portugal 1927-1996)
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25 de outubro de 2011

Ah! esse homem... : Maria Hilda de J. Alão


Ah! esse homem. Que me toca os seios,
Como um beija-flor toca, no jardim, as flores,
Arrepia-me despertando antigos devaneios,
De mãos no meu corpo em longos passeios.

Ah! esse homem. Que me cobre de beijos,
Que deixa marcas dentadas nos meus braços,
Expõe minha anatomia nua sem segredos,
Como se fosse um quadro de célebre pintor,

E me mira com olhos de sol ofuscante,
Incendeia a tela com seu fogo sagrado,
Remexe a lava, no fundo, adormecida,
No vulcão dos meus profundos desejos,

Fazendo explodir em mim a mulher plena,
A amante ardente de gestos delicados,
Que pouco se importa com os espinhos,
Para ser a dona dos seus carinhos.

                                         " HA! ESSE HOMEM... "
Maria Hílda de J. Alão
(Brasil)
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Poema enviado pela nossa admiradora
Maria Angela Silva Casaca Almeida

23 de outubro de 2011

Cantiga, partindo-se : João Roiz de Castel-Branco


Senhora, partem tão tristes
Meus olhos por vós, meu bem,
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,
Tão doentes da partida,
Tão cansados, tão chorosos,
Da morte mais desejosos
Cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes,
Tão fora d’esperar bem,
Que nunca tão tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

João Roiz de Castel-Branco
(Portugal 1432-1481)

Saberás que não te amo e que te amo : Pablo Neruda

Saberás que não te amo e que te amo
porquanto de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem a sua metade fria.

Eu te amo para começar a te amar,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de te amar nunca:
por isso mesmo é que ainda te amo.

Te amo e não te amo como se tivesse
em minhas mãos a chave da ventura
e um certo destino desdatado.

Meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.

Pablo Neruda – Cien sonetos de amor e una canción desesperada
(Chile 1904-1973)
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Cecília Meireles: Retrato


Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.



Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

in Cecília Meireles  Viagem
(Brasil 1901-1964)
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Previlégios do pobre : Juan del Vale y Caviedes


Se se cala, o pobre é parvo;
um maçador , se é palreiro;
bisbilhoteiro, se sabe;
se afável, é embusteiro;
se é gentil, intrometido,
se não atura, é soberbo;
cobarde, quando é humilde,
se é audaz, não possui tento;
se é valente, é temerário;
presunçoso, se é discreto;
adulador, se obedece,
se algo recusa, é grosseiro;
com pretensões, atrevido;
com méritos, não ganha apreço;
sua nobreza é oculta,
sua veste sem esmero;
se trabalha, é ambicioso,
e, pelo contrário extremo,
um perdido, se descansa…

vejam bem que previlégio!

Juan del Vale y Caviedes
(Espana 1645-Peru 1697)
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21 de outubro de 2011

Poema : Mário Cesariny


Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto      tão perto    tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura.

 Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

Mário Cesariny
(Portugal 1923-2006)
in Pena Capital
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Pequena rosa, rosa pequena : Pablo Neruda

Pequena
rosa,
rosa pequena
às vezes,
diminuta e desnuda,
parece
que me cabes na palma
da mão,
assim vou-te colher
e te levar à minha boca,
mas
de repente
meus pés tocam teus pés e minha boca teus lábios,
cresceste,
sobem teus ombros como duas colinas,
teus peitos passeiam pelo meu peito.
Meu braço mal alcança a rodear
a delgada linha de lua nova que tem a tua cintura:
no mar como na água te desataste:
meço apenas os olhos mais extensos do céu
e me inclino à tua boca para beijar a terra.

in Pablo Neruda Os versos do capitão
(Chile 1904-1973)
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E ME INCLINO À TUA BOCA

                  PARA BEIJAR A TERRA

Os olhos de Isa : Joaquim Pessoa



Os olhos de Isa

Nos olhos de Isa a chama grita e a noite
acende fogueiras.

Os meus olhos param. Nos olhos de Isa.

Oh, nos olhos de Isa espreguiça-se a madrugada
e o vento acorda para ensinar os pássaros a voar
e as árvores a acenar-lhes uma bandeira de folhas, uma tristeza
verde.

Nos olhos de Isa a manhã explode num inferno de estrelas,
um clarão de silêncio em estilhaços de rosas, pétalas de
sombra.

Nos olhos de Isa os poetas vagueiam num bosque de mel
onde as abelhas constroem a tarde
desesperadamente.

Nos olhos de Isa ninguém repara na minha solidão.



Joaquim Pessoa 
Portugal, 1948
in Os Olhos de Isa
Editor: Litexa Editora
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20 de outubro de 2011

Pablo Neruda: Não te amo como se fosses rosa de sal topázio

Não te amo como se fosses rosa de sal topázio
ou flecha de cravos que propagam o fogo:
te amo como se amam certas coisas escuras,
secretamente, entre a sombra e a alma.

Te amo como a planta que floresce e leva
dentro de si, escondida, a luz daquelas flores,
e graças a teu amor vive escuro em meu corpo
o estreitado aroma que subiu da terra.



Te amo sem saber como, nem quando, nem de onde,
te amo directamente, sem problemas nem orgulho:
assim te amo porque não sei amar de outra maneira,

a não ser deste modo em que não sou nem és,
tão perto que a tua mão sobre o meu peito é minha,
tão perto que se fecham teus olhos com meu sono.

Pablo Neruda – Cien sonetos de amor e una canción desesperada 
(Chile 1904-1973)

19 de outubro de 2011

Na idade em que eu : Basílio da Gama


Na idade em que eu, brincando entre os pastores,
Andava pela mão e mal andava,
Uma ninfa comigo então brincava,
Da mesma idade e bela como as flores.

Eu com vê-la sentia mil ardores,
Ela punha-se a olhar e não falava;
Qualquer de nós podia ver que amava,
Mas quem sabia então que éramos amores?

Mudar de sitio à ninfa já convinha,
Foi-se a outra ribeira; e eu naquela
Fiquei sentindo a dor que n’alma tinha.

Eu cada vez mais firme, ela mais bela;
Não se lembra já de que foi minha,
Eu ainda me lembro que sou dela!...

Basílio da Gama
(Brasil 1741-Portugal 1795)

Cecília Meireles: Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem triste:
sou poeta.

Irmão de coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.



Cecília Meireles 
Brasil, 1901-1964
in Viagem
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Vitorino Nemésio: O calor fez a casa mais delgada


Já um pouco de vento se demora;
Já sua força vale a de uma mão
Nestes papéis que trago para fora,
Que o campo dá certeza e solidão.

O calor fez a casa mais delgada,
Agora colho a tarde; a vida não.
Sou como a macieira carregada:
De palavras a mais cobri o chão.

Árvores há no Outono que conhecem
O toque e ardor das folhas de amanhã
E esperando-as, altas, adormecem.
Com espaço e vento nunca a vida é vã.




Eu volto à mão do Outono em meus papéis.
Penso e, indiscreto, o ar remove
Estas imagens cruéis
Que a minha vida comove.

Vitorino Nemésio
(Portugal 1901-1978)

Basílio da Gama: Já Marília cruel, me não maltrata

Já Marília cruel, me não maltrata
Saber que usas comigo de cautelas,
Que inda te espero ver, por causa delas
Arrependida de ter sido ingrata:

Com o tempo tudo se desbarata,
Teus olhos deixarão de ser estrelas;
Verás murchar no rosto as faces belas,
E as tranças d’ouro converter-se em prata.

Pois se sabes que a tua formosura
Por força há-de sofrer da idade os danos,
Por que me negas hoje essa ventura?

Guarda para seu tempo os desenganos,
Gozemo-nos agora, enquanto dura,
Já que dura tão pouco a flor dos anos.

Basílio da Gama
(Brasil 1741-Portugal1795)
in Cinco séculos de poesia
Antologia da poesia brasileira clássica
Seleção: Frederico Barbosa
Landy Editora
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Fugira da minh’alma melindrada: Marceline Desbordes-Valmore

Fugira da minh’alma melindrada;
Longe de mim julguei tê-la afastada:
Toda fremente, um dia, ela chegou,
A sua mão pouco soube o que queria fazer
Tempo não tive pra me enfurecer;
Tão-pouco soube o que queria fazer;
Meu coração tarde o adivinhou.

Sem prevenir, disse ela: «Aqui estou!
Esse coração me espera. Pelo Amor
Qu’imploro, serei de novo seu senhor.»
Ao som do amor minha razão cedeu:
Quis afastar-me, e o meu corpo tremeu.
Balbuciei algum gemido ao pérfido;
Para tocar-me, vestiu um olhar tímido;
E a meus pés, chorando, se atirou.
Tudo esqueci quando o Amor chorou.

Marceline Desbordes-Valmore
(France 1786-1859)
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Eu te nomeei rainha:Pablo Neruda

Eu te nomeei rainha.

Existem mais altas que tu, mais altas.
Mais puras que tu, mais puras.
Mais belas que tu, mais belas.

Mas tu és rainha.

Quando vais pelas ruas
ninguém te reconhece.
Ninguém vê a coroa de cristal, ninguém vê
o tapete de ouro vermelho
que pisas por onde passas,
o tapete que não existe.



E apenas apareces
Cantam todos os rios
em meu corpo, as camparras
estremecem o céu,
e um hino enche o mundo.

Somente tu e eu,
somente tu e eu, amor meu,
o escutamos.

Pablo Neruda – Los versos del capitán
(Chile 1904-1973)
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                                                              “ SOMENTE TU E
                                                                      SOMENTE TU E EU, AMOR MEU…”

Adoração: Guerra Junqueiro

Eu não te tenho amor simplesmente.
A paixão em mim, não é amor, filha, é adoração!
Nem se fala em voz baixa à imagem que se adora.
Quando da minha noite eu te contemplo, aurora,
E, estrela da manhã, um beijo teu perpassa
Em meus lábios, oh! Quando essa infinita graça
Do teu piedoso olhar me inunda, nesse instante
Eu sinto – virgem linda, inefável, radiante,
Envolta num clarão balsâmico de Lua,
A minh’alma ajoelhar, trémula, aos pés da tua!
Adoro-te!... Não és só graciosa, és bondosa:
Além de bela és santa; além de estrela és rosa.
Bendito seja Deus, bendita seja a Providência
Que deu o lírio ao monte e à tua alma
                                                              ( a inocência,
O Deus que te criou, anjo, para te amar,
                                                                                                     E fez do mesmo azul o Céu do teu olhar!...

Guerra Junqueiro
(Portugal 1850-1923)
                                            " E FEZ DO MESMO AZUL
                                                     O CÉU DO TEU OLHAR!... "

Este perfume: Salvador Novo




E, todavia, eu não quisera amar-te.
Mas ter-te, sim de todas as maneiras.
Quem és e como és, de quem te abeiras,
que dizes ou não dizes, pouco importa.

E muito menos hoje me conforta.
Neste sorriso que te dou tranquilo,
eu ponho num remorso tudo aquilo
que em fundo amor eu pudera dar-te,

se alguma vez te amasse de amor fundo
senta-te à luz do mar, à luz do mundo,
como na primeira vez em que te vi,


tão jovem, que era crime contemplar-te.
E despe-te outra vez, pois vem olhar-te
Quantos te buscam de saber-te aqui.

 Sendo um de tantos, nunca te perdi.


Jorge de Sena
(Portugal 1919-1978)
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Escuridão formosa: Gonzalo Rojas

À noite toquei-te e senti-te
sem que minha mão fugisse para lá da minha mão
sem que o meu corpo fugisse, ou meus ouvidos:
de um modo quase humano
senti-te.

A pulsar,não sei se como sangue ou como nuvem errante,
em minha casa, na ponta dos pés, escuridão que sobe,
escuridão que desce, cintilante, correste.

Correste por minha casa de madeira,
e abriste as janelas,
e senti pulsar a noite toda,
filha dos abismos, silenciosa,
                                                                                        guerreira tão terrível e tão bela,
                                                                                        que tudo quanto existe,
                                                                                        sem tua chama, não existiria para mim.

Gonzalo Rojas
(Chile 1917-2011)
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Dorme, amor!... : Illé Tuktash

Dorme, amor!... Uma estrela nascente
Treme, suave, quando vem o vento leve.
Vibra com o com o frio, o portão
Desenha seus contornos no crepúsculo.
Dorme!... Esta noite serei uma pomba,
Descerei, leve, sobre a tua cortina,
Para sobre o peito te cruzar as asas,
E sem ruído, depois te abraçar.

Illé Tuktash
(1907-1957)
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