Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

30 de novembro de 2011

Que eras tu meu ser, querida : Almeida Garret


Que eras tu meu ser, querida,
Teus olhos a minha vida,
Teu amor todo o meu bem.
Ai! Não mo disse ninguém.
Como a abelha corre ao prado,
Como no céu gira a estrela,
Como a todo o ente seu fado
Por instinto se revela,
Eu no teu seio divino
Vim cumprir o meu destino…
Vim, que em ti só sei viver,
Só por ti posso morrer.

Almeida Garrett
(Portugal 1799-1854)

28 de novembro de 2011

Amar! : Florbela Espanca



Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui…além…
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente…
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou Desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois, se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder…pra me encontrar…



Florbela Espanca (Sonetos)
(Portugal 1894-1930)
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A Bela Infanta

Estava a bela Infanta
No se jardim assentada,
Com um pente de oiro fino
Seus cabelos penteava.

Deitou os olhos ao mar
Viu vir uma grande armada;
Capitão que nela vinha,
Muito bem a governava.

Diz-me, ó capitão
Dessa tua nobre armada,
Se encontraste meu marido
Na terra que Deus pisava;

Anda tanto cavaleiro
Naquela terra sagrada...
Diz-me tu ó senhora,
As senhas que ele levava;

Levava cavalo branco,
Selim de prata doirada,
Na ponta da sua lança
A cruz de Cristo levava;

Pelos sinais que me deste
Lá o vi numa estacada
Morrer morte de valente:
Eu sua morte vingava;

Ai triste de mim viuva,
Ai triste de mim coitada!
De três filhinhas que tenho,
Sem nenhuma ser casada!...

Que darias tu senhora,
A quem o trouxera aqui?
Dava-lhe oiro e prata fina,
Quanta riqueza há por ai;

Não quero oiro nem prata
Não o quero para mim;
Que darias mais senhora,
A quem to trouxera aqui?

De três moinhos que tenho,
Todos os três tos daria a ti;
Um mói cravo e canela,
Outro mói o gerzeli:
Rica farinha que fazem!
Tomara-os El-rei para si;

Os teus moinhos não quero,
Não os quero para mim;
Que darias tu senhora,
A quem to trouxera aqui?

As telhas do meu telhado,
Que são de oiro e marfim;
As telhas do teu telhado,
Não as quero para mim;

Que darias mais senhora
A quem to trouxera aqui

De três filhas que eu tenho,
Todas três daria a ti,
Uma para te calçar,
Outra para te vestir,
A mais formosa de todas
Para contigo dormir;

As tuas filhas Infanta,
Não são damas para mim:
Dá-me outra coisa senhora,
Se queres que o traga aqui;
Não tenho mais que te dar,
Nem tu mais que me pedir;
Tudo não senhora minha,
Que ainda não te deste a ti;

Cavaleiro que tal pede,
Que tão vilão é de si,
Por meus vilões arrastado
O farei andar ai;
Ao rabo do meu cavalo,
Á volta do meu jardim;

Vassalos, ó meus vassalos,
Acudi-me agora aqui!...

Este anel de sete pedras
Que contigo reparti...
Que é dela a outra metade?
Pois a minha vê-la aqui!

Tantos anos que chorei,
Tantos sustos que tremi!...
Deus te perdoe marido,
Que me ias matando aqui.

(Histórias Tradicionais Portuguesas)

21 de novembro de 2011

A criança que fui chora na estrada: Fernando Pessoa



A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.


Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.



Fernando Pessoa
(Portugal  1888-1935)
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Do prazer dos homens casados: Bertolt Brecht

Mulheres minhas, infiéis, adoro amá-las:
Vêem meu olho em sua pelve embutido
E têm de encobrir o ventre já enchido
(Como dá gozo assim observá-las).

Na boca ainda o sabor do outro homem
Ela é forçada a dar-me tesão viva
Com essa boca a rir para mim lasciva
Outro caralho ainda no frio abdómen!

Enquanto a contemplo, quieto e alheio
Do prato do seu gozo comendo os restos
Esgana no peito o sexo, com seus gestos

Ao escrever os versos, ainda eu estava cheio!
(O gozo ia eu pagar de forma extrema
Se as amantes lessem este poema.)


Bertolt Brecht


(Germany 1898-1956)
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A casada infiel: Federico García Lorca

Eu que a levei ao rio,
pensando que era donzela,
porém tinha marido.

Foi na noite de Santiago
e quase por compromisso.
Apagaram-se os lampiões
e acenderam-se os grilos.
Nas últimas esquinas
toquei seus peitos dormidos,
e se abriram prontamente
como ramos de jacintos.
A goma de sua anágua
soava em meu ouvido
como uma peça de seda
rasgada por dez punhais.
Sem luz de prata em suas copas
as árvores estão crescidas,
e um horizonte de cães
ladra mui longe do rio.

Passadas as sarçamoras,
os juncos e os espinhos,
debaixo de seus cabelos
fiz uma cova sobre o limo.
Eu tirei a gravata.
Ela tirou o vestido.
Eu, o cinturão com revólver.
Ela, seus quatro corpetes.
Nem nardos nem caracóis
têm uma cútis tão fina,
nem os cristais com lua
reluzem com esse brilho.
Suas coxas me escapavam
como peixes surpreendidos,
a metade cheias de lume,
a metade cheias de frio.
Aquela noite corri
o melhor dos caminhos,
montado em potra de nácar
sem bridas e sem estribos.
Não quero dizer, por homem,
as coisas que ela me disse.
A luz do entendimento
me faz ser mui comedido.
Suja de beijos e areia,
eu a levei do rio.
Com o ar se batiam
as espadas dos lírios.

Portei-me como quem sou.
Como um cigano legítimo.
Dei-lhe um estojo de costura,
grande, de liso palhiço,
e não quis enamorar-me
porque tendo marido
me disse que era donzela
quando a levava ao rio.



Federico García Lorca
(España  1898-1936)
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Desperta-me de noite

Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas



O sono em que me deito
pois suspeitas
que com ele me visto
e me defendo


É raiva
então ciúme
a tua boca


É dor e não
queixume
a tua espada


É rede a tua língua
em sua teia
é vício as palavras
com que falas



E tomas-me à força
não o sendo
e deixo que o meu ventre
se trespasse


E queres-me de amor
e dás-me
o tempo

A trégua
A entrega
O disfarce

E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lençol que desfazes

na pressa de teres o que só sentes
e possuires o que não sabes

Desperta-me de noite
com o teu corpo


Tiras-me do sono
onde resvalo

E eu pouco a pouco
vou repelindo a noite


E tu dentro de mim
vais descobrindo vales.


Maria Teresa Horta in As Palavras do Corpo
(Portugal)
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Patrícia Clemente: Seios



Sofia, eu no teu rosto busco espelho,
Enquanto beijo os nós dos teus artelhos,
Enquanto tocas com teus pés meus seios.

E o corpo sabe: sou-te assemelhada,
E leva o pé à tua coxa amada,
Sou presa seduzida por teus cheiros.

E o corpo sabe o quanto é aquecido
Meu pé que sobe dentro do vestido,
Sorrindo do macio dos teus pentelhos.

E o corpo sabe: sou-te parecida,
Toco a mim mesma ao te tocar, amiga,
Se pouso, enfim, os dedos nos teus seios.

E o corpo sabe bem que sou-te gêmea
Me fazes louca, lúcida ou boêmia,
No gesto em que se unem nossos seios.

Sofia, no meu rosto tens espelho,
De quanto bem me faz amar teus seios



Patrícia Clemente
(Marco Aurélio Vieira Pais)
Brasil

Os amores

Era intenso o calor, passava do meio dia;
Estava eu em minha cama repousando.
(...) Eis que vem Corina numa túnica ligeira,
Os cabelos lhe ocultando o alvo pescoço;
Assim entrava na alcova a formosa Semiramis,
Dizem, e Laís que amaram tantos homens.
Tirei-lhe a túnica, mas sem empenho de vencer:
Venceu-a, sem mágoa, a sua traição.
Ficou em pé, sem roupa, ali diante de meus olhos.
Em seu corpo não havia um só defeito.
Que ombros e que braços me foi dado ver, tocar!
Os belos seios, que doce comprimi-los!
Que ventre mais polido logo abaixo do peito!
Que primor de ancas, que juvenil a coxa!
Por que pormenorizar? Nada vi não louvável,
E lhe estreitei a nudez contra o meu corpo.
O resto, quem não sabe? Exaustos, repousamos.
Que outros meios-dias me sejam tão prósperos.


Ovídio
(Roma  43 a.c. – 18 d.c.)

Se duvidas que teu corpo

Se duvidas que teu corpo
Possa estremecer comigo –
E sentir
O mesmo amplexo carnal,
– desnuda-o inteiramente,
Deixa-o cair nos meus braços,
E não me fales,
Não digas seja o que for,
Porque o silêncio das almas
Dá mais liberdade
às coisas do amor.

Se o que vês no meu olhar
Ainda é pouco
Para te dar a certeza
Deste desejo sentido,
Pede-me a vida,
Leva-me tudo que eu tenha –
Se tanto for necessário
Para ser compreendido.


António Botto
(Portugal  1897 – Brasil  1959)
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20 de novembro de 2011

Afrodite: Irene Lisboa

Formosa.
Esses peitos pequenos, cheios.
Esse ventre, o seu redondo espraiado!
O vinco da cinta, o gracioso umbigo, o escorrido
das ancas, o púbis discreto ligeiramente alteado,
as coxas esbeltas, um joelho único suave e agudo,
o coto de um braço, o tronco robusto, a linha
caríciosa do ombro...
Afrodite, não chorei quando te descobri?
Aquele museu plácido, tantas memórias da Grécia
e de Roma!
Tantas figuras graves, de gestos nobres e de
frontes tranquilas, abstractas...
Mas aquela sala vasta, cheia, não era uma necró-
pole.
Era uma assembleia de amáveis espíritos, divaga-
dores, ente si trocando serenas, eternas e nunca
desprezadas razões formais.

Afrodite, Afrodite, tão humana e sem tempo...
O descanso desse teu gesto!
A perna que encobre a outra, que aperta o corpo.
A doce oferta desse pomo tentador: peito e ventre.
E um fumo, uma impressão tão subtil e tão pro-
vocante de pudor, de volúpia, de reserva, de
abandono...
Já passaram sobre ti dois mil anos?

Estranha obra de um homem!
Que doçura espalhas e que grandeza...
És o equilíbrio e a harmonia e não és senão corpo.
Não és mística, não exacerbas, não angústias.
Geras o sonho do amor.

Praxíteles.
Como pudeste criar Afrodite?
E não a macerar, delapidar, arruinar, na ânsia de
a vencer, gozar!
Tinha de assim ser.
Eternizaste-a!
A beleza, o desejo, a promessa, a doce carne...


Irene Lisboa
(Portugal  1892-1958)
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Teu corpo seja brasa


teu corpo seja brasa
e o meu a casa
que se consome no fogo

um incêndio basta
pra consumar esse jogo
uma fogueira chega
pra eu brincar de novo


Alice Ruíz
(Brasil)
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Entranhas

O sorriso caiu.
Entre as pétalas de mim:
o cio.
Esperma aos farelos.
A lua bóia na taça de sangue.
Entre os sopros selvagens,
tórridos toques
(sinceros como um cadáver).
Com os dedos enfiados no vento,
quero lamber a liberdade.
Já esfacelei minhas lágrimas...
Enquanto o sol
baba sobre mim,
vou varrendo minha sombra
com restos de beijos...
A esperança dormiu.
Entre os subúrbios de mim:
a dor.
Bolhas de areia,
cacos de suor...
Há bolor nas estrelas.
Eis-me pecado!
Eis-me boca!
Pouca coisa:
alfinetes incendiados.
O amor vai pingando sobre o telhado,
amargo enquanto vocábulo:
deserto parido.
A vida é um estupro:
nasci para morrer.
Renascer das cinzas,
das sobras,
das teias...
Vou lutar até o orgasmo.
A noite
arrotou.
Assim seja,
assim sangre...
Entre a poeira de mim:
o prazer.
Caroço de paixão.
Vou morrer...
Vou morrer... Mas é só para te humilhar.
Vem...
Degola meu cheiro.
Não sou mulher,
sou distanásia.


Agostina  Akemi
(Brasil)
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Intervalo amoroso

O que fazer entre um orgasmo e outro,
quando se abre um intervalo
sem teu corpo?

Onde estou, quando não estou
no teu gozo incluído?
Sou todo exílio?

Que imperfeita forma de ser é essa
quando de ti sou apartado?

Que neutra forma toco
quando não toco teus seios, coxas
e não recolho o sopro da vida de tua boca?

O que fazer entre um poema e outro
olhando a cama, a folha fria?


Affonso Romano de Sant'Anna
(Brasil)
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O meu amor: Chico Buarque

O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca
Quando me beija a boca
A minha pele inteira fica arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada, ai

O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos
Viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo
Ri do meu umbigo
E me crava os dentes, ai

Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz

O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me deixar maluca
Quando me roça a nuca
E quase me machuca com a barba malfeita
E de pousar as coxas entre as minhas coxas
Quando ele se deita, ai

O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios
De me beijar os seios
Me beijar o ventre
E me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo
Como se o meu corpo fosse a sua casa, ai

Eu sou sua menina, viu?
E ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz


Chico Buarque
(Brasil)
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Uma mulher


Uma mulher caminha nua pelo quarto
é lenta como a luz daquela estrela
é tão secreta uma mulher que ao vê-la
nua no quarto pouco se sabe dela

a cor da pele, dos pêlos, o cabelo
o modo de pisar, algumas marcas
a curva arredondada de suas ancas
a parte onde a carne é mais branca

uma mulher é feita de mistérios
tudo se esconde: os sonhos, as axilas,
a vagina
ela envelhece e esconde uma menina
que permanece onde ela está agora

o homem que descobre uma mulher
será sempre o primeiro a ver a aurora.


Bruna Lombardi
(Brasil 1952)
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Indagação: Carlos Drummond de Andrade

Como é o corpo?
Como é o corpo da mulher?
Onde começa: aqui no chão
Ou na cabeleira, e vem descendo?
Como é a perna subindo e vai subindo
Até onde?
Vê-la num corisco é uma dor
No peito, a terra treme.
Diz-que na mulher tem partes linda
E nunca se revelam. Maciezas
Redondas. Como fazem
Nuas, na bacia, se lavando,
Para não se verem nuas nuas nuas?
Por que dentro do vestido muitos outros
vestidos e brancuras e engomados,
Até onde? Quando é que já sem roupa
É ela mesma, só mulher? E como que faz
Quando que faz
Se é que faz
O que fazemos todos porcamente?


Carlos Drummond de Andrade
Brasil 1902-1987
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Quero um homem: Cláudia Marczak

Quero um homem
que toque minha alma,
que entre pelos meus olhos
e invada meus sonhos.
Quero que me possua inteira,
corpo e alma,
fazendo dos meus desejos
breves segundos de êxtase
o prazer do encontro total.
Quero sentir seus braços longos
envolvendo meu abraço,
seus lábios mudos
calando o meu silêncio
sem precisar nada dizer...
apenas me olhando
com olhos negros e úmidos
e me tomando devagar,
como o mar avança na praia,
como eu sei que tem que ser
e sei que um dia será.


Cláudia Marczak
(Brasil)
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Sylvia Plath: Ariel

Ariel
Êxtase no escuro,
E um fluir azul sem substância
De penhasco e distâncias.

Leoa de Deus,
Nos tornamos uma,
Eixo de calcanhares e joelhos! – O sulco

Fende e passa, irmã do
Arco castanho
Do pescoço que não posso abraçar,

Olhinegra
Bagas cospem escuras
Iscas –

Goles de sangue negro e doce,
Sombras.
Algo mais

Me arrasta pelos ares –
Coxas, pêlos;
Escamas de meus calcanhares.

Godiva
Branca, me descasco –
Mãos secas, secas asperezas.

E agora
Espumo com o trigo, reflexo de mares.
O grito da criança


Escorre pelo muro
E eu
Sou flecha,

Orvalho que avança,
Suicida, e de uma vez se lança
Contra o olho

Vermelho, fornalha da manhã.




Sylvia Plath
(USA 1932 – England 1963)
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Jorge Isaacs: Sonhei

Sonhei feliz que à tua casa um dia,
alta noite, levou-me amor veemente,
e eu aspirei o delicioso ambiente
velado, numa luz suave e macia.

Sobre moles coxins, de fantasia,
dormir fingias voluptuosamente:
a cabeleira de ébano, luzente
sobre as brancas roupagens, se perdia.

Trêmulo de emoção e de ansiedade
beijei-te, com os meus lábios abrasados...
Surpresa e carinhosa me sorriste...

Não, não baixes teus olhos por piedade!
Que brilhem de prazer, iluminados,
fazendo alegre a minha vida triste!


Jorge Isaacs
(Colômbia  1837-1895 )
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Soror Juana Inés de La Cruz: Soneto

Rosa divina que em gentil cultura
és, com a tua fragrante sutileza,
magistério purpúreo da beleza,
alva lição de excelsa formosura;

há em ti como que humana arquitetura,
exemplo de uma ingênua e vã nobreza,
em cujo ser fundiu a natureza
o berço alegre e a triste sepultura.

Altiva em tua pompa presumida,
soberba, a morte afrontas, não te inclinas,
mas logo, desmaiada e emurchecida,

teu ser desfaz-se todo em tristes ruínas!
E assim, com douta morte e fútil vida,
vivendo enganas e morrendo ensinas!


Soror Juana Inés de La Cruz
(México - 1651-1695)
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Manuel José Othon: Soneto

É o meu adeus! Adiante vais, austera,
pelas planícies que o calor escalda,
por teus cabelos soltos reverbera
a luz - a maldição que se desfralda!

Em minhas vãs angustias... Que me espera?
Ao longe, és como fúnebre grinalda
numa desolação de primavera,
numa funda tristeza, de esmeralda.

O terramoto humano, num momento,
destruiu meu coração - oh ruína estranha!
Maldito seja, pois, o pensamento!

Ainda te avisto, dolorosamente...
Sigo teu vulto, como se acompanha
o que foge e se afasta eternamente...


Manuel José Othon
(México 1858-1906)
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