Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

31 de maio de 2014

Ruy Belo: E tudo era possível



Na minha juventude antes de ter saído
de casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder de uma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer



Ruy Belo
Portugal; Lisboa 1919
Santa Barbara; Califórnia 1978
in Todos os Poemas
Editor: Assírio & Alvim
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Lilás Carriço: Perfil crioulo


Era linda!...
Os seus cabelos, negros e compridos,
ao contrastar no claro dos vestidos,
caíam-lhe ondulados no colo voluptuoso
como um colo de cisne, grácil e capitoso.
A sua tez morena acetinada,
onde brilhavam uns claros olhos tentadores
rescendia, macia e perfumada,
emoldurada por cílios sonhadores.
Brincavam-lhe na boca uns dentes de marfim,
imitando a brancura veludínea do jasmim.
Os seus lábios vermelhos, sensuais,
recortavam-se em curvas ideais,
evocando a linda Citereia
que deles se servia pra tentar
o belo Júpiter ao sentir beijar
a boca doce e quente da gentil sereia.
O seu corpo sereno, coleante,
ao requebrar-se em curvas caprichosas,
era qual bela taça de espumante
num gota-a-gota em horas deliciosas!

Era bela!...
Um sorriso modesto, indefinido,
em formoso botão desabrochado,
aflorava no revê rosto entristecido
entre as faces oculto, envergonhado.
Um olhar escondido, mas ardente,
numa desconfiança sem igual,
aumentava o feitiço meigo e quente
que vinha dessa deusa tropical.
Perigosa presença a esconder-se´
apagada, suave e feiticeira,
num breve andar de sílfide ligeira.
Uma silenciosa timidez,
admirável fonte de brandura,
dava-lhe um ar intenso de candura
com uns leves assomos de altivez.
Parecia viver num outro mundo
donde voltava com tristeza imensa
pra este mergulhado em treva densa
tão igual ao seu ser meditabundo,
um ser que, no seu todo, sem rival,
era um pomo gostoso e perfumado
apetecido e sempre disputado
por quem sentia o aroma enfeitiçado
dessa encantada Circe original!

Era linda!...
Em toda ela a noite era um dia,
em toda ela a luz resplandecia
em revérberos mágicos, fagueiros,
a incidir serenos, feiticeiros,
a escoar o filtro tentador
o poder estuante, sensual,
a atração do todo corporal
que nela era desejo e era amor!



Lilás Carriço
Brasil; Manaus
Portugal; Moimenta da Beira
in Arco-Íris Poético
Editor: Porto Editora

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25 de maio de 2014

Jorge de Sena: Arte de Amar


Quem diz de amor fazer que os actos não são tão belos
que sabe ou sonha de beleza? Quem
sente que suja ou é sujado por fazê-los
que goza de si mesmo ou de alguém?

Só não é belo o que não se deseja
ou que ao nosso desejo mal responde.
E suja ou é sujado que não seja
feito do ardor que se não nega ou esconde.

Que gestos há  mais belos que os do sexo!
Que corpo belo é menos belo em movimento?
E que mover-se o corpo no de um outro o amplexo
não é dos corpos o mais puro intento!

Olhos se fecham não para ver
mas para o corpo ver o que é que eles não,
e no silêncio se ouça um só ranger
da carne que é da carne a só razão.




Jorge de Sena
Portugal; Lisboa 1919
Santa Barbara; Califórnia 1978
in Antologia Poética
Editor: Guimarães Editores
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Mia Couto: Seios e Anseios


As vezes que morri
boca derramada entre os teus seios,
todas essas vezes
não me deram luto
porque, de mim, eu em ti nascia.

 Todos esses abismos,
meu amor,
não me deram regresso.

 Depois de ti,
não há caminhos.

 Porque eu nasci
antes de haver vida,
depois de tu chegares.

 


Mia Couto
Moçambique; Beira 1955
in tradutor de chuvas - poesia
Editor: Editorial Caminho
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Mia Couto: Beijo





Não quero o primeiro beijo:
basta-me
o instante antes do beijo.

Quero-me
corpo ante o abismo,
terra no rasgão do sismo.

O lábio ardendo
entre tremor e temor,
o escurecer da luz
no desaguar dos corpos:
o amor
não tem depois.

Quero o vulcão
que na terra não toca:
o beijo antes de ser boca.



Mia Couto
Moçambique; Beira 1955
in tradutor de chuvas - poesia
Editor: Editorial Caminho
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Luiza Neto Jorge: Preludio para Sexo e Sonho

 
A virilha verde congestionou-me o sonho. Relentado a par de mim e a
voz, o eco. Há corpos de homens rígidos, para deitar abaixo com uma
bola vermelha, corpos, subitamente, numa barraca de feira.
A virilha verde retesou-me o sonho.
Porquanto o horizonte é uma centopeia grande, o mar é uma centopeia
grande. Nós uma centopeia emborcada, a arranhar o ar.
Abano-me com um leque de papel amarrotado. Saturo-me de coisas
familiares. No outono, as flores apócrifas, no papel da parede, deixarão
zumbir corolas.
A virilha verde sugou-me o sonho.
O sexo da 2ª pessoa induvidada. A alma da 2ª pessoa ambígua é o
aberto entre mim e o sangue.
Sangra um lábio ilúcido arpoado no meu.
E o silêncio espásmico.
A virilha verde amorteceu no sonho.
Será urgente talhar uma paz apodrecida, a
chicote, pelas manhãs nervadas?
Dormiste com as chaminés a fumegar.
Dormi a dar à luz.
Para se defender de nós, a noite estendeu
o escudo. Há uma lua
apedrejada de mitos e estrelas.
A virilha verde morreu.

Vigília



Luiza Neto Jorge
Portugal; Lisboa 1939-1989
in Poesia
Editor: Assírio & Alvim
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22 de maio de 2014

E. M. Melo e Castro: Abro a experiência do teu corpo



Abro
     a experiência
               do teu corpo

o teu voo
     a experiência
          do teu ovo

a tua vinha
     a experiência
          da tua vinda

a tua voz
     a experiência
          de te ver

a tua pele
     a experiência
          de te despir

o teu peso
     a experiência
          do teu peso

o teu ver
     a experiência
          de te haver

o teu dar
     a experiência
          da tua dor

a tua cama
     a experiência
          de ti como

o teu lume
     a experiência
          do teu volume

a tua loucura
     a experiência
          de ti dura

o teu lugar
     a experiência
          do teu ar

as tuas pernas
     a experiência
          de ti terna

o teu húmus
     a experiência
          do teu ânus



E. M. Melo e Castro
Portugal (Covilhã) 1932
in Sim... Sim! - Poemas Eróticos
Editor: Vega
photo by google