Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

22 de fevereiro de 2015

Eugénio de Andrade: Escrito na terra


Da migração dos pássaros falaremos devagar
noutra ocasião

da cal espessa entornada na boca
dos poços
onde o silêncio apodrece.


Há uma razão para não rejeitarmos
tão cruel metáfora do sémen


descobrimos
nas altíssimas e lúcidas bagas de setembro
uma sabedoria próxima ainda das nascentes.


Era isto
onde uma só pedra queima os dedos.


Se queres um exemplo
pega neste mar estranho
olha-te nele
mas não te demores a contemplar
a branca quietude das violetas.


Vamos
         é noite agora é tempo
enquanto meus lábios brilham
de alguém morrer sobre o teu corpo.



Eugénio de Andrade
Portugal (Castelo Branco) 1923-2005
in Véspera da Água
Editor: Assirio & Alvim
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21 de fevereiro de 2015

Francisco Brines: A Despedida da luz



Desce, luz, a meus olhos
descansa teu cansaço
neles tão fatigados,
alivia-me e acaba-te
no amor do homem.
Antes que se dilate
a sombra dessa noite
em que tens que morrer
e eu tenho de morrer,
levanta-me teu lenço
que, por trás das montanhas,
é um fogo de rosas,
Vem dizer-me que a vida
foi dia longo e fiel,
que de meu amor soube,
e amarei este cansaço.






Francisco Brines
Espanha (Oliva, Valência) 1932
in A Última Costa
Editor: Assirio & Alvim
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William Carlos Williams: Chegada

E, todavia, chegas
dás por ti a desatar-lhe
o vestido
em alheios aposentos -
sentes que o outono
deixa cair as suas folhas de seda e linho
junto aos seus tornozelos.
Falso e o brilho do corpo que emerge
e se contorce
como vento no inverno...!

William Carlos Williams
USA (Retheford, New Jersey) 1883-1963
in Antologia Breve
Editor: Assirio & Alvim
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18 de fevereiro de 2015

Victor Hugo: Aparição





Vi um anjo branco que sobre mim passava;
O seu voo luminoso a tormenta acalmava,
E fazia calar ao longe o mar ruidoso.
- Que vens fazer, anjo, neste lugar tenebroso?
Respondeu: - A tua alma eu venho buscar.
Tive medo porque ouvi uma mulher a falar;
E disse-lhe, estendendo os braços a tremer:
- Que me restará? pois tu vais desaparecer.
Calou-se; o céu onde a sombra leva a palma
Escurecia... Disse: Se levares a minha alma,
Aonde a levarás? mostra-me pra que lugar.
Continuava calado. - Ó viajante do celeste lar,
Serás tu a morte? perguntei, ou és a vida?
Senti sobre a minha alma a noite estendida,
E o anjo tornou-se negro, dizendo: Sou o amor.
A fronte era mais clara que o dia em seu esplendor,
E eu via, na sombra onde luzia o seu!  olhar,
Os astros, através das asas, a brilhar.



Victor Hugo
França (Besançon) 1802-1886
in Poemas
Editor: Assirio & Alvim
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17 de fevereiro de 2015

William Carlos Williams: Soneto em busca de um amor


Os corpos nus como troncos sem casca
exalam às vezes um odor tão
doce, homem e mulher

debaixo das árvores loucamente
em harmonia com o tapete de

aromáticas folhas de pinheiro
bordadas com videira virgem
disso poderia fazer-se um soneto

Disso poderia fazer-se um soneto! louco odor
odor de agulhas de pinheiro, odor de
troncos sem casca somente odor
de videira virgem que

não tem odor, odor de mulher nua,
por vezes odor de homem.




William Carlos Williams
USA (Retheford, New Jersey) 1883-1963
in Antologia Breve
Editor: Assirio & Alvim
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Ana Luísa Amaral: Lua de papel






























Se eu cantasse o amor sem resultado ou causa,
seria mais sensata: chegava-me uma lua de papel,
um par de braços lisos, conformados

Se eu cantasse o amor sem causa ou resultado,
tinha muito mais paz: fingida em luas-cheias,
seria mais sensata e decerto poeta bem melhor

Assim o que me resta é lua a trans-
bordar de tridimensional. A paz a falhar toda
e eu resolvida em causa insistir papel. E amor.


Ana Luísa Amaral
Portugal (Lisboa) 1956
in Poesia Reunida
Editor: Edições Quasi
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Ana Luísa Amaral: Titulo por haver


No meu poema ficaste
de pernas para
o ar
(mas também eu
já estive tantas vezes)

Por entre versos vejo-te as mãos
no chão
do meu poema
e os pés tocando o título
(a haver quando eu
quiser)

Enquanto o meu desejo assim serás:
incómodo estatuto;
preciso de escrever-te
do avesso
para te amar em excesso



Ana Luísa Amaral
Portugal (Lisboa) 1956
in Poesia Reunida
Editor: Edições Quasi
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15 de fevereiro de 2015

Eugénio de Andrade: Sobre a cintura

Deixa a mão
caminhar
perder o alento


até onde se não respira.

Deixa a mão
errar
sobre a cintura
apenas conivente
com o nácar da língua.


Só um grito desde o châo
pode fulminá-la.


A morte
não é um segredo
não é em nós jardim de areia.


De noite
no silêncio baço dos espelhos
um homem
pode trazer a morte pela mão.


Vou ensinar-te como se reconhece

repara

é ainda um rapaz
não acaba de crescer


nos ombros
                  a luz
desatada


a fulva
lucicez dos flancos.


A boca sobre a boca nevava.



Eugénio de Andrade
Portugal (Castelo Branco) 1923-2005
in Véspera da Água
Editor: Assirio & Alvim
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Ana Luísa Amaral: KAMASUTRAS



Atira a roupa toda
para o chão.
Depressa. Sem momento sedutor
nenhum

As peças aos bocados,
desmaiadas,
caídas pelo chão.
Do mais pesado ao mais quase
infinito de leveza

E deixa a luz
acesa. Sem sedução
nenhuma. Uma luz pelo menos



Ana Luísa Amaral
Portugal (Lisboa) 1956
in Poesia Reunida
Editor: Edições Quasi
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Ana Luísa Amaral: Madrigal em madrugada




A exaustão
das cinco da manhã
e a noite em claro

Gravo o poema,
que o peso da caneta
e eu nem Atlas

Os olhos fecharem-se
mais fortes
que o desejo
                 (vontade de rimar
                  nestes espaços) 

                 [Se agora tu viesses
                  dar-me um beijo
                  com certeza adormecia
                  nos teus braços]


             
Ana Luísa Amaral
Portugal > Lisboa 1956
in Poesia Reunida
Editor: Edições Quasi
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8 de fevereiro de 2015

Filipe Marinheiro: ponho-me a amar dolorosamente...

ponho-me a amar dolorosamente
que nunca amei ou amarei
coisas secretas coisas que gemem endoidecidas nesta escrita
que navega para se manter acordada e ao mesmo tempo ausente
dos solenes gestos perdidos na cumplicidade das noites
sem luzes por se apagarem ou se acenderem

aves possuem as visões vivas da ardente paixão
e de repente cheio de suor danço com os dedos em cima da cara
rachando o vertical sangue a cuspe gelatinoso e espalho o veneno
das outras pessoas sobre a ideia sem um fim em si

depois cravo o meu corpo como quem molda um embrulho
de máscaras a enforcarem-se

mas subo radioso pelo peso da alma abaixo contorcendo-se
e ao cair para o inquietante ruído dos pés a atravessar as costelas
uma a uma cruzando-se

por dentro ato as vértebras que se rasgam lindamente
até sacudirem as cordas vocais

aí desprendo os dias dos seus filamentos de açúcar aonde pouso
a cabeça entre os teus peitos e desperto esta triste poesia
que tanto me aprisiona e ama


Filipe Marinheiro
Portugal > Coimbra 1982
in Noutros Rostos
Editor: Chiado Editora
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Filipe Marinheiro: despertei a falar-te dessa escassa palavra que é o amor





















despertei a falar-te dessa escassa palavra que é o amor
girava nas tuas veias em assobio luminoso

tu cantavas no vermelho de minha garganta orvalhada
como um amanhecer dos beijos sobre as rosas do nosso peito
maravilhado por novas palavras com furor a despertarem

os pássaros que nos apertavam baixinhos nas suas asas de música
contra todas as coisas de um mar a enrodilhar a leveza que a todo
o momento nos sorve e onde aquele fresco amor se concentra
despertava


Filipe Marinheiro
Portugal > Coimbra 1982
in Noutros Rostos
Editor: Chiado Editora
photo by Google