Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

29 de março de 2015

Armando Silva Carvalho: Dá-me um abraço, voltemos a S. Bento


























Dá-me um abraço, voltemos a São Bento
e sem democracias.
Dá o braço aos nossos cinquenta anos
que querem regressar
aos dezoito pelo caminho mais certo,
o do desejo.
Era ali que eu te ouvia chegar com o teu triunfo,
o teu corpo exultante,
os teus olhos verdíssimos que pousavam no prato
de lentilhas
em que matava a fome dos teus beijos.

Os outros andavam perdidos nas suas emboscadas
de solidão com direito a prémio
e a escada do quinto andar rangia no escuro
da minha espera.
E tu subias, subias devagar, com a vitória nas mãos
e no cabelo a espessa brilhantina
que era minha
e tua.
Chegavas e não falavas de livros,
gritavas pelo meu corpo em cada poro
e eu obediente e casto
despia-o devagar à luz da rua.


São Bento das antigas assembleias
da chuva miúda que brilhava nas pedras
da cama em que te expunhas
como numa montra.
O cio corria leve para não deixar traços
no alto desse andar
- O mar ficava preso e eu abria-te
os braços.

São Bento das antigas assembleias
da chuva miúda que brilhava nas pedras
da cama em que te expunhas
como numa montra.
O cio corria leve para não deixar traços
no alto desse andar
- O mar ficava preso e eu abria-te
os braços.

No meu liceu cresciam os burgueses
que mandam na política.
E comprava-te uma revista que trazia na capa
a Amália Rodrigues
a sair de um pequeno avião a hélice,
com um lenço na cabeça, triste e desarmada.
E amava o fado como te amava a ti
em silêncio e sem qualquer virtude
a não ser a das mão correndo em tom menor
pelo fogo do teu corpo
para ninguém nos ouvir chegar ao fundo.

E em fado me mudava até ao lume
Em fado revolvia como faca
Em fado devorava até às fezes
Em fado assassinava para que fosses.



Armando Silva Carvalho
Portugal (Óbidos) 1938
in O que foi passado a limpo, Obra Poética
Editor: Assirio & Alvim
photo by Google

Cara lh ama: E. M. Melo e Castro

amam-no todos
uns porque o têm
bem colocado e ereto
outros porque a foda
sem ele não bate certo

e se o nariz não chega
e os dedos se dispersam
só ele é que é capaz
de entrar todo na toda
discreto e bom rapaz

e os tristes que o não têm
amam-no doutra maneira
distantes e macios
não sabem se se vêm
ou se é só caganeira


E. M. Melo e Castro
Portugal 1932
in “Cara lh amas”
photo by Google

22 de março de 2015

Manuel Alegre: Teoria do amor






Amor é mais do que dizer.
Por amor no teu corpo fui além
e vi florir a rosa em todo o ser
fui anjo e bicho e todos e ninguém.

Como Bernard de Ventadour amei
uma princesa ausente em Tripoli
amada minha onde fui escravo e rei
e vi que o longe estava todo em ti.

Beatriz e Laura e todas e só tu
rainha e puta no teu corpo nu
o mar de Itália a Líbia o belvedere.

E quanto mais te perco mais te encontro
morrendo e renascendo e sempre pronto
para em ti me encontrar e me perder.


Manuel Alegre
Portugal (Águeda) 1936
in Obra Poética
Editor: Publicações D. Quixote
photo by Google

Maria Teresa Horta: Anjos mulheres VI



As mulheres voam
como os anjos:
Com as suas asas feitas
de cristal de rocha da memória

Disponíveis
para voar

soltas...

Primeiro
lentamente: uma por uma

Depois,
iguais aos passaros

fundas...

Nadando,
juntas

Secreta: a rasar o
chão

a rasar a fenda
da lua


no menstruo:
por entre a fenda das pernas

Às vezes é o aço
que se prende
na luz

A dobrarmos o espaço?

Bruxas:
pomos asas em vassouras
de vento

E voamos

Como as asas
lhe cresciam nas coxas

diziam dela:
que era um anjo do mar

Rondo alto,
postas em nudez de ombros
e pernas

perseguindo,

pelos espaços,
lunares
da menstruação

e corpo desavindo

Não somos violencia
mas o voo

quando nadamos
de costas pelo vento

até à foz do tempo
no oceano denso
da nossa própria voz

Sabemos distinguir
a dormir
os anjos das rosas voadoras

pelo tacto?

Somos os anjos
do destino

com a alma
pelo avesso
do útero

Voamos a lua
menstruadas

Os homens gritam:
– são as bruxas

As mulheres pensam:
– são os anjos

As crianças dizem:
– são as fadas

Fadas?

filigrama cintilante
de asas volteando
no fundo da vagina

Nadamos?

De costas,
no espaço deste século

Mudar o rumo
e as pernas mais ao
fundo

portas por trás
dobradas pelos rins

Abrindo o ar
com o corpo num só golpe

Soltas,
viando
até chegar ao fim

Dizem-nos:
que nos limitemos ao espaço

Mas nós voamos
também
debaixo de água

Nós somos os anjos
deste tempo

Astronautas,
voando na memória
nas galáxias do vento...

Temos um pacto
com aquilo que
voa

– as aves
da poesia

– os anjos
do sexo

– o orgasmo
dos sonhos

Não há nada
que a nossa voz não abra

Nós somos as bruxas da palavra


Maria Teresa Horta
Portugal 1932
in Anjos
Editor: Litexa Editora
photo by Google

Sá de Miranda: Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho


Quando eu, senhora, em vós os olhos ponho,
e vejo o que não vi nunca, nem cri
que houvesse cá, recolhe-se a alma a si,
e vou tresvaliando, como em sonho.

Isto passado, quando me desponho,
e me quero afirmar se foi assi,
pasmado e duvidoso do que vi,
m’espanto às vezes, outras m’avergonho.

Que, tornando ante vós, senhora, tal,
quando m’era mister tant’outr’ajuda,
de que me valerei, se alma não val?

Esperando por ela que me acuda,
e não me acode, e está cuidando em al,
afronta o coração, a língua é muda.


Sá de Miranda
Portugal » Coimbra 1481-1558
in Os dias do Amor
photo by Google

Haiku Erótico: E. M. Melo e Castro


mamilos ilhas
do mar elástico
flores
na pele do peito

negro loiro
o perfume volume
clitóris
da face do êxtase

vento oscilando
cúpula no mastro
glande
rubra de neve

na pele do deserto
areia movediça
cetim
de dedos cactus

fundo e claro
o obscuro fluxo
canto
do olho aberto

figura esguia
peixe na água
lava
por fenda fina

a saliva sabe
do sol o toque
beijo
eixo na boca


voo no ritmo
das asas duplas
cópula

única é a ave

.
volume ocupando
o espaço da mão
flecha
redonda logo

olhos abertos
na cor da noite
voláteis
cristais de luz

na onda anda
um outro lugar
vulva
volume vago

o ambiguo dizer
pedra de toque
pénis
no calor dos olhos

caricia outra
leve fluir
língua
o toque ácido

total orgasmo
nulo de nada
luz
sobre a iluminação


E. M. Melo e Castro
Portugal 1932
in “Sim… Sim! poemas eróticos”
photo by Google

Maria Teresa Horta: Deitada na cama


Deitada na cama grita ainda (nada mais a obriga a viver). A outra olha-lhe os peitos e as ancas e tenta reter-lhe as mãos desordenadas que procuram o vácuo à sua roda. Podiam-na ter abandonado lá fora, ao pé da grande árvore, que era o mesmo. Deitada grita ainda mais (nada a pode obrigar a viver).
E a outra analisa-lhe o corpo, analisa-lhe o medo: o medo que conhece há anos. 
O mesmo vício.

Excerto



Maria Teresa Horta
Portugal (Lisboa) 1937
in Ambas as mãos sobre o corpo
Editor: Publicações D. Quixote
photo by Google

Maria Teresa Horta: Oferecia o corpo…





Oferecia o corpo com a mesma suavidade. As pernas
esguias ou o ventre, tal como os seios e os ombros,
tinham um contorno adolescente onde ela domava o
vício, onde ela soltava, às vezes, o vício, com um
torpor ou com uma liberdade total, uma necessidade
extrema. E o gemido enchia a casa depois de sair
mordido da sua boca.

Excerto


Maria Teresa Horta
Portugal (Lisboa) 1937
in Ambas as mãos sobre o corpo
Editor: Publicações D. Quixote
photo by Google

Fernando Echevarría: Amor à vista



Entras como um punhal
até à minha vida.
Rasgas de estrelas e de sal
a carne da ferida.

Instala-te nas minas.
Dinamita e devora.
Porque quem assassinas
é um monstro de lágrimas que adora.

Dá-me um beijo ou a morte.
Anda. Avança.
Deixa lá a esperança
para quem a suporte.

Mas o mar e os montes...
isso, sim.
Não te amedrontes.
Atira-os sobre mim.


Atira-os de espada.
Porque ficas vencida
ou desta minha vida
não fica nada.

Mar e montes teus beijos, meu amor,
sobre os meus férreos dentes.
Mar e montes esperados com terror
de que te ausentes.

Mar e montes teus beijos, meu amor!... 




Fernando Echevarría
Espanha (Santander) 1929 – Poeta português
in Poemas de Amor
Antologia de Poesia Portuguesa
Org: Inês Pedrosa
Editor: Publicações D. Quixote
photo by Google

Pedro Tamen: Não sei amor…

Não sei, amor, sequer, se te consinto
ou se te inventas, brilhas, adormeces
nas palavras sem carne em que te minto
a verdade intemida em que me esqueces.
Não sei, amor, se as lavas do vulcão
nos lavam, veras, ou se trocam tintas
dos olhos ao cabelo ou coração
de tudo e de ti mesma. Não que sintas
outra coisa de mais que nos feneça;
mas só não sei, amor, se tu não sabes
que sei de certo a malha que nos teça,
o vento que nos leves ou nos traves,
a mão que te nos dê ou te nos peça,
o princípio de sol que nos acabes.


Pedro Tamen
Portugal (Lisboa) 1934
in Tábua das matérias
Editor: Tertulia
photo by Google

David Mourão-Ferreira: Os teus olhos

Os teus olhos
exigindo
ser bebidos

Os teus ombros
reclamando
nenhum manto

Os teus seios
pressupondo
tantos pomos

O teu ventre
recolhendo
o relâmpago


David Mourão-Ferreira
Portugal » Lisboa1927-1996
in Antologia Poética
Editor: Editorial Presença
photo by Google

Maria Teresa Horta: Apertei mais a tua mão



Apertei mais a tua mão presa na minha e
senti-te subitamente longe. Dobrei mais ainda
os dedos sobre os teus quase fincando as unhas,
sentindo a pele quente, os dedos compridos,
firmes, toda a tua mão como que todo o teu
corpo. A saudade, a distância do teu corpo, a
distância da tua mão ali na minha.

(…)


Maria Teresa Horta
Portugal (Lisboa) 1937
in Ambas as mãos sobre o corpo
Editor: Publicações D. Quixote
photo by Google

Gomes Leal: Autópsia do Amor




O Amor - essa paixão romanesca e fagueira -
que os vates têm cantado em bemol comovido,
é, na forma, uma coisa assaz brusca e grosseira,
como o assalto da fera e o ataque do bandido.

Tal e qual como o lobo ataca uma cordeira,
a empolga e lhe crava o colmilho atrevido,
assim ataca o Amor. - São da mesma maneira
o Espasmo, a Fúria, o Uivo, o Estertor, o Rugido.

Nas contorções do Cio e os seus enlaçamentos,
há o ardor da Serpente, a enroscar-se nas preias,
e a estrangular o touro enorme e mugidor.

E quer cheire ao sertão, ou da Lais aos ungentos,
Nos rosais, num covil, ou de Nero nas ceias,
- são sempre os mesmos ais, o Pranto, o Espasmo, a Dor.




Gomes Leal
Portugal 1848-1921
in Poemas de Amor
Org: Inês Pedrosa
Editor: Publicações D. Quixote
photo by Google

Victor Hugo: O Sultão Achemet

A Joana, a Granadina,
Sempre cantante e ladina,
Disse o sultão com ardor:
― Eu daria sem favor
O meu reino por Medina
Medina por teu amor.

Faz-te cristão, rei sublime!
Pois não é bom que se afirme
O prazer ter encontrado
Nos braços de um debochado.
Não quero fazer um crime:
Já me basta um pecado.

Com as pérolas cuja graça,
Minha rainha, realça
Do teu colo o branquear,
Eu farei por te agradar,
Se quiseres que eu faça
Rosário do teu colar.    




Victor Hugo
França (Besançon) 1802-1885
in Poemas
Editor Assirio & Alvim

photo by Google

21 de março de 2015

Fernando Pessoa: Bébé, vem cá; vem para o pé do Nininho




















Bébé, vem cá; vem para o pé do Nininho;
Vem para os braços do Nininho;
põe a tua boquinha contra a boca do Nininho…
Vem… estou tão só, tão só de beijinhos…

Quem me dera ter a certeza de tu teres saudades
de mim a valer.
Ao menos isso era uma consolação… Mas tu, se
calhar, pensas menos em mim que no rapaz do gargarejo,
e no D.A.F. e no guarda livros da C.D. & c.!
Má, má, má, má, má…!!!
    Açoites é que tu precisas.
Adeus: vou-me deitar dentro de um balde de cabeça para
baixo para descansar o espírito. Assim fazem todos os
grandes homens – pelo menos quando têm – 1º espirito,
2º cabeça, 3º balde onde meter a cabeça.

Um beijo só durando todo o tempo que o mundo ainda
tem que durar, do teu, sempre e muito teu
                  Fernando (Nininho)


Fernando Pessoa
Portugal » Lisboa 1888-1935
in Cartas de Amor de Fernando Pessoa
a Ophelia Queiróz
Editor: Portugália Editora

photo by Google

Fernando Pessoa: O amor que me têm...



“ O amor que me têm
                      ela disse,

 “ Não tem paixão, que consuma;
ciúme que desvaire; esquecimento, que deslustre.

     Amar-me é como uma noite de verão,
     quando os mendigos dormem ao relento,
     e parecem pedras à beira dos caminhos.

Dos meus lábios mudos não vem o canto das sereias,
nem melodia como a das árvores e das fontes;
mas o meu silêncio acolhe como uma música indecisa,
o meu sossego afaga como o torpor de uma brisa.



Fernando Pessoa
Portugal» Lisboa 1888-1935
in Livro do desassossego de
Bernardo Soares
Editor: Assirio & Alvim
photo by Google