Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

31 de março de 2013

Lábios formando o sonho de um beijo: Fernando Pessoa


Lábios formando 
O sonho de um beijo... 
Nunca ides além
Do mero desejo...
Tocar outra boca
Na nossa é tristonho
Para quem conhece
O sabor do sonho
Invisíveis bocas
Que nos vêm beijar
De um céu que só existe
No nosso sonhar...
O que dão só essas
Nunca tirarão...
E que no seu dá-lo
Nunca no-lo dão...
Deixai-me sonhar
Sem eu o saber...
Ou sabendo-o sempre...
Como pude ser.

Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
“in Poesia 1902-19172”

Antígona: Fernando Pessoa


Como te amo? Não sei de quantos modos vários
Eu te adoro, mulher de olhos azuis e castos;
Amo-te co′o fervor dos meus sentidos gastos;
Amo-te co′o fervor dos meus preitos diários.

É puro o meu amor, como os puros sacrários;
É nobre o meu amor, como os mais nobres fastos;
É grande como os mares altíssonos e vastos;
É suave como o odor de lírios solitários.

Amor que rompe enfim os laços crus do Ser;
Um tão singelo amor, que aumenta na ventura;
Um amor tão leal que aumenta no sofrer;

Amor de tal feição que se na vida escura
É tão grande e nas mais vis ânsias do viver,
Muito maior será na paz da sepultura!


Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
"in Poesia 1902-1917"

Quando ela passa: Fernando pessoa


Quando eu me sento à janela 
P'los vidros qu'a neve embaça
Vejo a doce imagem d'elia
Quando passa... passa.... passa...
N'esta escuridão tristonha
Duma travessa sombria
Quando aparece risonha
Brilha mais qu'a luz do dia.

Quando está noite ceifada
E contemplo imagem sua
Que rompe a treva fechada
Como um reflexo da lua,

Penso ver o seu semblante
Com funda melancolia
Qu'o lábio embriagante
Não conheceu a alegria

E vejo curvado à dor
Todo o seu primeiro encanto
Comunica-mo o palor
As faces, aos olhos pranto.

Todos os dias passava
Por aquela estreita rua
E o palor que m'aterrava
Cada vez mais s'acentua

Um dia já não passou
O outro também já não
A sua ausência cavou
Ferida no meu coração

Na manhã do outro dia
Com o olhar amortecido
Fúnebre cortejo via
E o coração dolorido

Lançou-me em pesar profundo
Lançou-me a mágoa seu véu:
Menos um ser n'este mundo
E mais um anjo no céu.

Depois o carro funério
Esse carro d'amargura
Entrou lá no cemitério
Eis ali a sepultura:

Epitáfio.

Cristãos! Aqui jaz no pó da sepultura
Uma jovem filha da melancolia
O seu viver foi repleto d'amargura
Seu rir foi pranto, dor sua alegria.

Quando eu me sento à janela
P'los vidros qu'a neve embaça
Julgo ver imagem dela
Que já não passa... não passa.


Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
in Cancioneiro

30 de março de 2013

José Asunción Silva: Poeta diz baixinho

                    Pota diz baixinho
                         os beijos furtivos!...


A sombra! As recordações! A lua não lançava
ali um único raio... Tremias e eras minha.
Tremias e eras minha sob a espessa folhagem,
um pirilampo errante alumiou-nos o beijo,
o contacto furtivo dos teus lábios de seda...
A selva negra e mística foi o quarto sombrio...
Naquele sitio o musgo tem um odor de reseda...
Passou luz pelos ramos como se o dia chegasse,
entre as névoas pálidas a lua aparecia...

                    Poeta diz baixinho
                         os íntimos beijos!

Ah, lembro-me ainda das noites doces!
No quarto senhorial, onde a tapeçaria
abafava o ruído com os seus fios espessos
nua nos meus braços foram teus beijos;
teu corpo de vinte anos entre a vermelha seda,
teus cabelos dourados e a tua melancolia
tuas frescuras de virgem e teu perfume de reseda...
os abatidos fios da tapeçaria.

                    Poeta diz baixinho
                         o último beijo!

Ah, lembro-me ainda da noite trágica!
O caixão heráldico no salão jazia,
o meu ouvido fatigado por vigílias e excessos,
sentiu como à distância as monótomas preces!
Tu, triste, hirta e pálida entre a seda negra,
a chama das velas tremia e movia-se,
perfumava a atmosfera um odor de reseda,
um crucifixo pálido os braços estendia
e gelada e violácea tua boca que foi minha!


José Asunción Silva
(Colômbia 1865-1896)
in Um país que sonha
"cem anos poesia colombiana"



Lamentação de outubro: Porfírio Barba Jacob

Eu não sabia que o azul amanhã
é vago espectro do brumoso ontem;
que agitado por sopros de centúrias
o coração anseia arder, arder.

Sinto seu influxo, sua latância, e quando
quer as suas luminárias acender.
Mas a vida está chamando,
e já não é tempo de aprender

Eu não sabia que teu sol, ternura,
dá ao céu das crianças a cor rosada,
e que, sob o loureiro, o herói rude
algo de criança tem de ter.

Oh quem pudesse um tremor de criança
a uma alvorada de inocência renascer?
Mas a vida está a passar,
e já não é tempo de aprender.

eu não sabia que a paz profunda
do afecto, os lírios do prazer,
a magnólia de luz de energia,
leva no seu brando seio a mulher.

Minha fonte rendida nesse seio brando,
um homem de verdade poderia ser...
Mas a vida está a acabar,
e já não é tempo de aprender!


Porfírio Barba Jacob
(Colômbia 1883-1942)
in Um país que sonha
"cem anos poesia colombiana"

Sutra: Claudio Daniel


             Para Reginabben

pálpebras de alfazema
cintilantes luas sem enigma
sob o céu anúbis-tânger-cicatriz
na seda cor de nuvem que simula o desejo
serpenteiam formas de dançarina moura
de seios tamarindo e lábios sabor anis
o seu púbis shiva kali irrompe como rosa
cítara que emudece o pensar do amante
e lhe toca o coração
no mais cálido êxtase de santos dervixes
mulher sem álgebra, sem mitologia, sem cabala
ou neurocibernética quântica
a mais-que-perfeita expressão do verbo
que resume à sua maneira shopenhauer
os manuscritos de Alexandria
os fabulosos cálculos dos astrónomos
e os acordes finais de um pianista de blues
dama feita para mim e o meu desejo de outro
que em tuas mãos é um leão domesticado
e no entanto és apenas uma mulher
deitada do lado esquerdo da cama.


Claudio Daniel
(Brasil 1962)
In “Os dias do amor”

Amo-a! Ibn 'Abd Al-Barr

amo-a!
e ela se compraz com o meu tormento.

é lua sobre o ramo
ou sobre duna erguida.
sobre tal beleza o que mais dizer?
seria inútil...

ela cuja amizade era alegria
deixou-me somente a via da renúncia,
era néctar, ei-la veneno.

a quem deixou de nos querer
a nossa morada não lhe apraz
e ao afastamento tem direito.

quando um homem não é apreciado,
e a alma não se sente, é cego ou louco
apenas do sábio o provérbio fala
e só de censura nos vem sabedoria.


Ibn 'Abd Al-Barr
(Luso-Árabe Séc. X
in Adalberto Alves
"O meu coração é Árabe"

A languidez do amor: Abu-L-Qâsim Ibn Al-Milh

cruzei-me com quem me dava
a languidez do amor.
a saudação lhe dei pela palavra.
porque a afeição se acabasse
não sentia o seu calor
e altaneio me evitava,
mas deixou-me que o beijasse:
foi como daquela vez
que avistando a claridade,
só querendo lume Moisés
falou com a divindade.

o jardim brinca com a brisa
que dir-se-ia ser sua emissária
no chamamento à festa da alvorada.

está ébrio, preso de seus ternos ramos,
e quando os doces pássaros o cantam
ele vai repetindo essa canção.

não faltam flores, estratégicos espias
com seus olhos vigiando namorados.
e se destacam na folhagem verde,
como luz, brilhando sobre as trevas.


Abu-L-Qâsim Ibn Al-Milh
(Luso-Árabe Séc. XII
in Adalberto Alves
"O meu coração é Árabe"

Como são bizarros certos reis: Abu ' Uthmân

Como são bizarros certos reis,
transformados em escravos do prazer.
apenas desejam duas coisas:
bocetinhas e bocas de mulher?
se o espírito mais lhes interessasse,
poriam de lado a fornicação
fruindo no amor puro a união.
passa o tempo, continuam reis do mundo:
oxalá que eles passem num segundo!
se viver é cruzar um deserto de morte
aborrecer tais prazeres é meu norte.

o meu fito neste mundo
é apenas ter puro o coração:
assim o guardo da corrupção
na via do Bem profundo.


Abu ' Uthmân
(Luso-Árabe Séc. XII
in Adalberto Alves
"O meu coração é Árabe"

Para beijá-la avancei: Abûl - Fadl Ibn Al - A - Lam

Para beijá-la avancei
e o desejo não se vergou ao medo.
ela disse: vais desonrar-te cedo!
respondi: é pecado sei!
mas algo supera essa mágoa:
é morrer de sede dentro d'água.

a mágoa doentia é que me deita
estas linhas que agora vos escrevo.
enquanto isso o lume da nostalgia
faz derramar minhas lágrimas.
ó meus amigos!
se ao impulso da minh'alma obedecesse,
rasgaria o meu peito à minha amada.


Abu-l-Fadl  Ibn Al-Allam
(Luso-Árabe Séc. XII)
in Adalberto Alves
"O meu coração é Árabe"

O dorso sob a luz o ar os dedos: Gastão Cruz

O dorso sob a luz o ar os dedos
a pele intensa de suor e fogo
o mar a primavera rompe o dorso
nocturno sob o fogo.

o dorso sob
um beijo a electricidade fria da noite
lábios subindo a encontrar o corpo
suor e água pó

humedecendo o dorso
o sentido da carne o frio
o rio aberto
vector
o dorso o olhar o fogo
o dorso todo humedecendo o beijo


Gastão Cruz
(Portugal 1941
in "Os poemas"

29 de março de 2013

Auto de fé: Manuela Amaral


 Não me arrependo dos amores que tive
dos corpos de mulher por quem passei
      a todos fui fiel
      a todos eu amei

Não me arrependo dos dias e das noites
em que o meu corpo herói ganhou batalhas
A um palmo do umbigo eu fui primeira
      a divina
      a deusa

a verdadeira mulher – sem rival.

Amei tantas mulheres de que nem sei o nome
eu só me lembro apenas
      de abraços
      de pernas
      de beijos
      e orgasmos

E no amor que dei
e no Amor que tive
eu fui toda mulher – fui vertical

Eu fui mulher em espanto
fui mulher em espasmo
fui o canto proibido e solitário

      Só tenho um itinerário: Amor-Mulher.


Manuela Amaral
(Portugal 1934-1995)

Sexo/Cama: Manuela Amaral



Fui ordinária
 requintada
tímida
Misturei poesia com vários palavrões

Gritei
Uivei
Gemi
Rasguei almofadas e lençóis

Fui carnaval de amor
no circo de uma cama.


Manuela Amaral
(Portugal 1934-1995)




Teu corpo de agosto: Manuela Amaral


Teu corpo é agosto

Tu cheiras a verão
por baixo das veias

Tu cheiras a quente

Tu cheiras à febre
do sangue maduro

      Teu ventre de orgia
      teu cheiro a sodoma
      aroma-mulher

Teu corpo de agosto
tem cheiro a setembro


Manuela Amaral
(Portugal 1934-1995)

No conjugar amor: Manuela Amaral


Descobrimos coisas
      que ninguém mais sabe

 
Coisas diversas do saber comum.

      A transfusão que existe no beijar
quando a ternura é líquida

      E a transparência
      opaca
      do suor
      quando o amor é feito

      E o jeito que nos fica
      de namorar o corpo

      E o exagero em tudo que se diz
      nas juras repetidas

Descobrimos coisas
      que ninguém mais sabe
      e que aprendemos juntas.



Manuela Amaral
(Portugal 1934-1995)

Grito Erótico: Manuela Amaral


Caluniaste o meu corpo
ao longo dos teus gestos

sem medida

Desde a palavra exacta
do meu sexo
e soletraste-me puta

      Puta
      Puta

Angustiosamente erótica
abri-me em coxas
e penetrei-te na minha fauna aquática
      Grito marinho
      a escorrer nas algas
      do meu ventre

      Puta
      Puta.


Manuela Amaral
(Portugal 1934-1995)

Chegou a noite desejada: Ibn Sallâm

chegou a noite desejada
e pude ter, enfim, a minha amada.
- para aquele que é enfermo da paixão
só existe um remédio na união -
meu hálito despertou-lhe as rosas da face
e bebi da sua boca o néctar
até que a minha sede se fartasse.

se a Razão de um homem ´perfeita
perfeito é aquilo de que ele é capaz.
a prova reside no que de bom quis:
os olhos não reprovarão o que ele faz
nem os ouvidos aquilo que ele diz.


Ibn Sallâm
(Luso-Árabe Séc. XII
in Adalberto Alves
"O meu coração é Árabe"

Por que será que não sentes: Ibn Bassâm

por que será que não sentes
por quem te ama piedade?
mal te afastas vem saudade.
dá-me pois consolação:
não tarda a separação!

vem daí deixa lá esse torpor!
o que agora conta e tem valor
é só a amada, linda como a lua,
e teres sempre cheia a taça tua!
não te embarace tanto nevoeiro
que sobre jardim e vinho vai pairando.
estares presente é o dever primeiro
e logo o jardim se irá mostrando.


Ibn Bassâm
(Luso-Árabe Séc. XII
in Adalberto Alves
"O meu coração é Árabe"

O Amor: Ibn Badrun


o amor é feito de prazer: 
então vive de beijos e abraços.
depois chega a hora de sofrer:
palavras amargas seguem nossos passos
e nos apartamos, como quem vai morrer.
mas ah!, se no amor não mais acreditasse
melhor fora que minha vida se acabasse!


Ibn Badrun
(Luso-Árabe Séc. XIII
in Adalberto Alves
"O meu coração é Árabe"

A Carta: Ibn Habîb


bem vinda carta! à chegada mostra
o seu rosto lindo, todo felicidade
veste-a a túnica de que mais se gosta
ostentando a festa da fidelidade.

não paro de olhá-la! de desvanecido,
minha mão lhe toca com veneração
dou-lhe o meu afago depois de a ter lido
ponho nela o beijo do meu coração.


Ibn Habîb
(Luso-Árabe Séc. XI
in Adalberto Alves
"O meu coração é Árabe"

Nesta vida apenas quero solidão: Ibn Sâlih Ash-Shantamarî

nesta vida apenas quero solidão
para nela verter meu pranto
confiando-me ao segredo do teu amor.
em redor de nós dois há olhos e ouvidos
dos quais é forçoso ocultar minha paixão
quando me encontro contigo:
assim te preservo - és minha vida! -
por temor que te ponham apartada
e meus olhos possam não mais te ver.
aviso-te e, se não fosse meu pudor,
minhas lágrimas sobre ti derramaria.

na mais luminosa noite
repouso ao corpo não dei
e de meus olhos o sono
nessa noite eu apartei:
aos brincos dela as argolas
dos tornozelos juntei.


Ibn Sâlih Ash-Shantamarî
(Luso-Árabe Séc. XII
in Adalberto Alves
"O meu coração é Árabe"

Carta: Al-Mu'tamid

lua plena no horizonte do meu peito!
este poema não traz da mentira o jeito.
ao escravizares da fala a beleza,
pérolas espalhaste com largueza.
deixá-lo! enfia-las á minha razão.

exclamei:
Allâh! que inteligência tão ornada
que pérolas rouba ao avaro mar.
aves que chegaram: vem à minha mão
esse teu segredo, não quero mais nada.
glória do meu reino, júbilo sem par:
apenas dois versos, tão somente dois
que de um puro amor me falam depois.


Al-Mu'tamid
(Luso-Árabe Séc. XI
in Adalberto Alves
"Al-Mu'tamid Poeta do Destino"

Poder: Al-Mu'tamid

                                                                                    meu olfacto é o teu odor delicioso
e o teu rosto o senhor dos olhos meus.
por seres minha, mesmo depois do adeus,
é que todos me chamam poderoso.


Al-Mu'tamid
(Luso-Árabe Séc. XI
in Adalberto Alves
"Al-Mu'tamid Poeta do Destino"

Alma Prisioneira: Al-Mu'tamid

sinto-me triste com a tua ausência
e ébrio por ti com o vinho da paixão.
anseiam sangue e coração
querendo beijar-te e abraçar-te.

não me queixo! pra quê ocultares-te?
juraram minhas pálpebras não cerrar-se
até que o nosso reencontro se consume.

vem amor, confia e não temas:
bem sabes que minh'alma em lume
é a prisioneira das tuas algemas.


Al - Mu'tamid
(Luso-Árabe Séc. XI
in Adalberto Alves
"Al - Mu'tamid Poeta do Destino"

Intimidade e Sonho: Al - Mu'tamid

partilhavas o meu leito nesse sonho,
o teu braço macio era a almofada
e com a paixão da insonia me enlaçavas.
eu beijava-te a boca, a nuca e a face
antes de, enfim, te possuir.

pelo teu amor!
se não me trouxesse o sonho a tua imagem
já não experimentaria o sabor do sono!


Al - Mu'tamid
(Luso-Árabe - Séc. XI
in Adalberto Alves
"Al-Mu'tamid Poeta do Destino"

26 de março de 2013

Cântico dos Cânticos IV: Salomão

IV
Como és bela minha amiga
como és bela
teus olhos quase pombas

por detrás do véu
Teus cabelos feito um bando de cabras negras

debandando pela montanha de Galaad

Teus dentes feito um bando de ovelhas brancas
que vêm saindo do lavadouro
Aos pares como gémeos
e nenhum cordeiro a menos

Feito um fio escarlate teus lábios
e a tua boca beleza pura
Feito metades de romã
tuas faces por trás do véu

Feito a torre de David teu pescoço
construída pelas altivas seteiras
Centenas de escudos pendentes de seu topo
todas as aljavas dos valentes

Teus dois peitos como dois filhotes
gémeos de uma corça
Que vão pastando entre rosas

Antes que assopre o dia
e se afugentem as sombras
Terei ido para a montanha de mirra
e para a colina do incenso

Tu és toda graça minha amada
e nenhuma jaça em ti

Comigo do Líbano esposa
Comigo do Líbano virás

Salomão
(Israel  Séc. X a. c. )                           Excerto

24 de março de 2013

Quadras de Fernando Pessoa

Deixa que um momento pense
Que ainda vives a meu lado...
Triste de quem por si mesmo
Precisa ser enganado!

Morto hei-de estar ao teu lado
Sem o sentir nem saber...
Mesmo assim, isso me basta
P'ra ver um bem em morrer.

Meu amor já não me quer,
Já me esquece e me desama.
Tão pouco tempo a mulher
Leva a prova que não ama!

Teu nome ouvido em segredo
No sonho em que a alma fala
Mesmo assim repito-o a medo
À alma que em mim o cala.

Nunca dizes se gostaste
Daquilo que te calei.
Se bem que o adivinhaste.
O que pensaste não sei.

Em vez de saia de chita
Tens uma saia melhor.
De qualquer modo és bonita,
E o bonita é o pior.

O burburínho da água
No regato que se espalha
É como ilusão que é mágoa
Quando a verdade baralha

Ambos à beira do poço
Achamos que é muito fundo
Deita-se a pedra, e o que eu ouço
É teu olhar, que é meu mundo.

Boca de riso escarlate
E de sorriso de rir...
Meu coração bate, bate -
Bate de te ver e ouvir.

Tens olhos de quem não quer
Procuram quem eu não sei
Se um dia o amor vier
Olharás como eu olhei.

Água que não vem na bilha
É como se não viesse.
Como a mãe, assim a filha...
Antes Deus as não fizesse.

Quantas vezes a memória
Para fingir que é gente,
Nos conta uma grande história
Em que ninguém está presente.

Não que flores te dar
Para os dias da semana.
Tens tanto sonho no olhar
Que o teu olhar sempre engana.

Tenho uma pena que escreve
Aquilo que eu sempre sinta.
Se é mentira, escreve leve.
Se é verdade, não tem tinta.

Lábios rubros em botão.
Onde o amor vem dormir,
Bebei do meu coração
Todo o amor que eu sei sentir.

A vida é um hospital
Onde quase tudo falta.
Por isso ninguém se cura
E morrer é que é ter alta.

A tua saia que é curta,
Deixa-te a perna a mostrar.
Meu coração já se furta
A sentir sem eu pensar.

Eu tenho um colar de pérolas
Enfiado para te dar:
As per'las são os meus beijos,
O fio é o meu penar.

Meu amor dá-me dois beijos
P'ra me dares um terceiro,
Que é só para haver um quarto
Antes do quinto e primeiro.

Dei-lhe um beijo ao pé da boca
Por a boca se esquivar.
A ideia talvez foi louca,
O mal foi não acertar.

Quando passas pela rua
Sem reparar em quem passa
A alegria é toda tua
E minha toda a desgraça.

Baila em teu pulso delgado
Uma pulseira que herdaste...
Se amar alguém é pecado,
És santa, nunca pecaste.

Teus olhos querem dizer
Aquilo que se não diz...
Tenho muito que fazer...
Que sejas muito feliz!

Que sejam teus olhos lindos
É coisa que ninguém nega;
É tão certo como estar
Minha alma de olha-los cega.

Por não poder dar esmola
A um pobre, ficaste triste
Pedi-te esmola d'amor
Tu tinha-lo, e não mó deste.

Já não sei senão querer,
E só sei querer-te a ti;
Caiu-me a alma a teus olhos,
Não a sei tirar dali.

Tu beijavas-me, e a beijar-me
Ensinaste esse teu cão...
O teu cão inda me beija,
Agora tu é que não.

Eu não sei como amar-te,
Nasci para te querer.
Ó quem me dera beijar-te ,
E beijar-te até morrer.


Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
in "Quadras ao gosto popular"


Café Havana: Harold Alvarado Tenorio

Vai pisando a noite
um esplendor de genitais
que celebra
a beleza de um mundo
de sobras e agravos.
Eles bebem.
Elas também.
No café Havana
amealhamos horas que não tivemos
e amores que tanpouco chegaram.
Tarde chegámos a um banquete
onde tudo,
salvo a velhice,
é melhor que a morte.


Harold Alvarado Tenorio
(Colombia 1945)
in Um país que sonha
"cem anos poesia colombiana"

Do corpo repousado: Casimiro de Brito


Talvez a vida não seja luminosa
mas tem momentos: o lago da cama, o sol
Na lombada dos livros, o joelho
Amável
Da mulher deitada. Como vai ser a manhã
não sei, ergo a minha taça.

Amadurece o mar, mergulho na luz
E regresso a casa: a boca na maçã
À sombra do teu olhar, a música
Dos gatos, as tuas mãos que envolvem
As árvores do meio-dia. Sabor a terra,
Gota a gota, na minha língua.

Caminho na praia como quem sente
As peles sobrepostas do mundo em volta
Do meu corpo, coração de pó
E sento-me em repouso a ouvir a respiração
Do vinho. Talvez a noite não apague
Esta magia



Casimiro de Brito
(Portugal 1938)
in 69 poemas de amor

Desde que o meu coração: Isumi Shikibu


Deitada e sozinha
de cabelo negro solto
e emaranhado,
sinto desejo daquele
que primeiro o veio tocar.

Sem ser perturbado
o meu jardim fica cheio
de mato estival -
como eu desejo que alguém
desbrave a erva profunda

Nesta longa insónia
fico a vigiar a noite
de Primavera -
mas não há guarda possível
que chegue para prendê-la


Isumi Shikibu
(Japão 974?-1034?)
in O japão no Feminino I

Desde que o meu coração: Ono No Komachi

Desde que o meu coração
me pôs à deriva em teu barco,
não passou um dia
que eu não ficasse encharcada
pelas tuas frias vagas.

Como a fraca onda,
que vai atrás da mais leve
carícia da brisa -
será assim que desejas
que eu esteja pronta a seguir-te?


Ono No Komachi
(Japão 834?)
in O japão no Feminino I

Incensos: Cruz e Sousa


Dentre o chorar dos trêmolos violinos,
Por entre os sons dos orgãos soluçantes
Sobem nas catedrais os neblinantes
Incensos vagos, que recordam hinos...

Rolos d'incensos alvadios, finos
E transparentes, fúlgidos, radiantes,
Que elevam-se aos espaços, ondulantes,
Em quimeras e sonhos diamantinos.

Relembrando turíbulos de prata
Incensos aromáticos desata
Teu corpo ebúrneo, de sedosos flancos.

Claros incensos imortais que exalam,
Que lânguidas e límpidas trescalam
As luas virgens dos teus seios brancos.


Cruz e Sousa
(Brasil 1861-1898)

Nunca amamos alguém: Fernando Pessoa


112.
     Nunca amamos alguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de
alguém. E a um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos.
     Isto é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um
prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente
do sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa.
O onanista é abjecto, mas, em exacta verdade, o onanista é a perfeita lógica
do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana.
     As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e tão
divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são
matéria de estranha complexidade. No próprio acto em que nos conhecemos,
nos desconhecemos. Dizem os dois "amo-te" ou pensam-no e sentem-no por
troca, e cada um quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até
porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstracta de impressões
que constitui a actividade da alma.
     Estou hoje lúcido como se não existisse. Meu pensamento é em claro como
um esqueleto, sem os trapos carnais da ilusão de exprimir. E estas considerações,
que formo e abandono, não nasceram de coisa alguma - de coisa alguma, pelo
menos, que esteja na plateia da consciência. Talvez aquela desilusão do
caixeiro da praça com a rapariga que tinha, talvez qualquer frase lida nos casos
amorosos que os jornais transcrevem dos estrangeiros, talvez até uma vaga
náusea que trago comigo e não me explico fisicamente...
     Disse mal o ecoliasta de Virgílio. É de compreender que sobretudo nos
cansamos. Viver é não pensar.


Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
in Livro do Desassossego de Bernardo Soares


Esquecimento: Fernando Charry Lara

 A trémula sombra já te cobre.
Só existe o esquecimento,
nu,
frio coração desabitado.
E já nada são em ti as horas
as taciturnas horas que são a tua vida.
Nem sequer como cinza
oculta que trouxeram
os transparentes
silêncios de uma recordação.
Nada. Nem o crepúsculo te envolve,
nem a tarde te enche de viagens,
nem a noite comove a tua obstinada
nostalgia do amor, quando
uma tácita donzela surge na sombra.
Ó coração, céu desabitado dos sonhos.


Fernando Charry Lara
(Colombia 1920 - USA 2004)
in Um país que sonha "Cem anos de poesia colombiana"

23 de março de 2013

Para compreender destruí-me: Fernando Pessoa

48.
Para compreender destruí-me. Compreender é esquecer de amar.
nada conheço mais ao mesmo tempo falso e significativo que
aquele dito de Leonardo da Vinci de que se não pode amar ou
odiar uma coisa senão depois de compreendê-la.

A solidão desola-me; a companhia oprime-me. A presença de
outra pessoa descaminha-me os pensamentos; sonho a sua
presença com uma distração especial, que toda a minha atenção
analítica não consegue definir.

Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
in Livro do desassossego de Bernardo Soares

Mesmo quando um rio de lágrimas: Isumi Shikibu

Mesmo quando um rio
de lágrimas atravessa
e molha este corpo,
não chega para apagar
todo o fogo do amor.

Consumi o corpo
a desejar o orgasmo
do que não voltou.
É agora um vale profundo
O que foi meu coração.

Penso!" nos meus sonhos
poderemos encontrar-nos "...
Virando a almofada,
eu ando às voltas na cama
incapaz de adormecer.


Isumi Shikibu
(Japão 974? - 1034?)

Erecto: Armando Silva Carvalho

Perdidas
sob o som
as cigarras
roem
este espaço
em chamas

E a sede
já presente
a introsão
dos líquidos.
Os frascos
transitivos:
As torneiras
loucas
de pressão.
As várias
e dispersas
bombas
de pressão.

Armando Silva Carvalho
(Portugal 1938)
in O que foi passado a limpo
    (Obra Poética)

Namorados: Bernardino Lopes


Nessas manhãs alegres, perfumadas
De éter sadio e claro firmamento
acariciando o mesmo pensamento
Percorremos o parque, de mãos dadas.

Aves trinando em cima das ramadas,
Alvos patos e um cisne a nado lento
Sobre as águas do lago, num momento
Pela brasa do sol ensanguentadas...

Brilha o sereno trêmolo nas pontas
Do vistoso gramal, como se fosse
Solto rosário de opalinas contas...

Enquanto uns casos rústicos de aldeia
Eu vou narrando-lhe, em linguagem doce,
Escuto a queixa de seus pés na areia!


Bernardino Lopes
(Brasil 1859-1916)

Quando amo uma mulher: Casimiro de Brito

Quando amo uma mulher é como
se amasse todas as matérias
do mundo uma só boca onde pouso
a língua uma só fenda que me leve
por montes e vales neve incandescência
aos rios silenciosos
que nascem do fundo.



Casimiro de Brito
(Portugal 1938)
in 69 poemas de amor

Quantas vezes caminhei pela praia: Casimiro de Brito

Quantas vezes caminhei pela praia
à espera que viesses. Luas inteiras.
Praias de cinza invadidas pelo vento.
Quantas estações quantas noites
indormidas. embranqueceram-me
os cabelos. E só hoje
quando exausto me deitei em mim
reparei
que sempre estiveste a meu lado.
Na cal frágil dos meus ossos.
Nas hastes do mar infiltradas
no sangue. Na película
dos meus olhos quase cegos


Casimiro de Brito
(Portugal 1938)
in 69 poemas de amor

22 de março de 2013

Noite por ti despida: Casimiro de Brito

Adulta é a noite onde cresce
o teu corpo azul. A claridade
que me dás em troca dos meus ombros
cansados. reflexos coloridos. Amei
o amor. Amei-te meu amor sobre ervas
orvalhadas. Não eras tu porém
o fim dessa estrada sem fim.
Canto apenas (enquanto os álamos
amadurecem) a transparência, o caminho.
A noite por ti despida. Lume e perfume
do sol. Intimo rumor do mundo


Casimiro de Brito
(Portugal 1938)
" in 69 poemas de amor "

Nono fragmento: Casimiro de Brito

Como são belos os teus seios! Foram feitos
à medida das minhas mãos. Pousa-os
na minha boca e conta-me
a tua história. Não tens história?
Não tens noite nem vazio nem praia
branca? Fala-me então
do sol, da migração dos pássaros, da mansidão
das estrelas - fala-me de ti antes de possuíres
um nome, uma história. Sim
em qualquer parte
lançaremos os nossos corpos na relva; alfaias
efémeras; armas exíguas
ardidas na guerra. Como são belos
os teus seios! Trémulas palavras.
Deixa que neles eu me queira como quem
se deita num rio.Iluminas
as águas e as estrelas. O percurso
é longo. O silêncio montanhoso. Debruço-me
na tua solidão.



Casimiro de Brito
(Portugal 1938)
" in 69 poemas de amor "

Al Berto: Amadeo Modigliani & Jeanne Hébuterne


amadeo:
certo dia, quando pintava o retrato de soutine e a mão
deixara de me seguir, soutine disse-me:
- bebes para te matares.
e eu perguntei-lhe:
- e tu soutine, o que te levou à tentativa de te enforcares?
saímos depois, em silêncio para a rua. vimos o seu latejar sob
as pontes e engolir as estrelas da imensa noite de paris.

jeanne:
soutine tinha razão, os anos passaram, não muitos, e
amadeo tentara arranjar coragem para deixar de beber. foi
inútil, e às vezes era violento - apesar de saber que eu nunca o abandonaria.

amadeo:
jeanne pressentiu que eu não precisaria de muito tempo
para realizar a minha obra. sempre vivi como um meteoro.

soutine:
a 25 de janeiro de 1920, jeanne soube da morte de
amadeo. refugiou-se num quarto em casa dos pais, num
andar. abriu a janela e saltou para junto dele.

Al Berto
(Portugal 1948-1997)

Apenas paixão: Casimiro de Brito

A voz que se levanta o ruído
Hasteado na brisa
Que me toca nos ombros
A tua boca as tuas mãos de água
Ora deslizante ora íntima sedentária
O vento breve que me esculpe em músculos
Cada vez mais sensíveis
A onda que no ar se acende
Entre o rumar da história e o cheiro das tílias
A carne que vai morrer mas também
O suor e o sabor de quem amo
E bebo
E canto
Para que não se perca nada
Para que nada se perca enquanto
O meu sexo amaciado nas tuas águas
Se ajuste à curva do céu
E o meu dorso esmagado pelo dorso do mundo
Encontre no chão da casa o repouso
De quem não tem repouso apenas
Paixão...



Casimiro de Brito
(Portugal 1938)
" in 69 poemas de amor "

20 de março de 2013

Ana Marques Gastão: Quando pela noite chegas



Quando pela noite chegas dissolvem-se as trevas
e eu não quero, porque esta é a noite
que ilumina o dia, canto do silêncio, eco subtil
no discurso do mundo. Quando pela noite chegas
é meu o teu amor, e a morte tarda doce com o mel.


Ana Marques Gastão
Portugal 1962
in Nocturnos
Editor: Gótica