Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

24 de março de 2013

Nunca amamos alguém: Fernando Pessoa


112.
     Nunca amamos alguém. Amamos, tão somente, a ideia que fazemos de
alguém. E a um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos.
     Isto é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um
prazer nosso dado por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente
do sexual buscamos um prazer nosso dado por intermédio de uma ideia nossa.
O onanista é abjecto, mas, em exacta verdade, o onanista é a perfeita lógica
do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana.
     As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e tão
divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são
matéria de estranha complexidade. No próprio acto em que nos conhecemos,
nos desconhecemos. Dizem os dois "amo-te" ou pensam-no e sentem-no por
troca, e cada um quer dizer uma ideia diferente, uma vida diferente, até
porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstracta de impressões
que constitui a actividade da alma.
     Estou hoje lúcido como se não existisse. Meu pensamento é em claro como
um esqueleto, sem os trapos carnais da ilusão de exprimir. E estas considerações,
que formo e abandono, não nasceram de coisa alguma - de coisa alguma, pelo
menos, que esteja na plateia da consciência. Talvez aquela desilusão do
caixeiro da praça com a rapariga que tinha, talvez qualquer frase lida nos casos
amorosos que os jornais transcrevem dos estrangeiros, talvez até uma vaga
náusea que trago comigo e não me explico fisicamente...
     Disse mal o ecoliasta de Virgílio. É de compreender que sobretudo nos
cansamos. Viver é não pensar.


Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
in Livro do Desassossego de Bernardo Soares


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