Da mulher o que nos comove e enleva é a parte
impoluta que ela tem do céu; é a magia que a fada exercita obedecendo a interno
impulso, não sabido dela, não sabido de nós. Ali há mensagem de outras regiões;
aqui, no peito arquejante, nos olhos amarados de gozozas lágrimas, há um
espirar para o alto, um ir-se o coração avoando desde os olhos, desde o sorriso
dela para soberanas e imorredouras alegrias. Nós é que não sabemos nem podemos
ver senão o pouquinho desse infinito que nos entre-luz nas graças do primeiro
amor, do segundo amor, de quantos estremecimentos de súbita embriaguez nos
fazem crer que despimos o invólucro de barro e pairamos alados sobre a região
das lágrimas.
É Deus que não quer ou somos nós que não
podemos prorrogar a duração ao sonho? Se Deus, que mal faria à sua divina
grandeza que o pequenino guzano o adorasse sempre? Porque vai tão rápida aquela
estação em que o homem é bom porque ama, e é caritativo e dadivoso porque tudo
sobeja à sua felicidade? Quando poderam aliar-se um amor puro com a impureza
das intenções? Quais olhos de homem afectivo e como santificado por seu amor
recusaram chorar sobre desgraças estranhas? Que exuberância de bens a desbordar
da alma! Que ânsia de fazermos em redor de nós alegrias, fortunas, mãos
erguidas connosco a bem-dizer os contentamentos que nos chove o manancial dos
puros deleites.
Não é Deus que nos agourenta as alegrias
castas, as espirações que lhe comprazem. Nós é que não sabemos que luz é essa
da nova manhã que dentro nos alumia voluptuosidades desconhecidas. Atribuímos
ao efeito os prestígios da causa. É que não podemos ver por longo tempo a
mensageira dos mundos estrelados: quizemos pôr a mão na vara que nos encantou;
e a vara fez-se serpente, porque a alma imaculada já não era o impulsor da
nossa ansiedade. O homem, escurecido já no interior, viu a mulher ao sol da
terra, sol que incende o sangue, e abraza o rosto e cresta as asas do anjo. Ai
dos anjos em carne que olham depois em si e correm a vestir-se da folhagem do
paraíso! Desde esse momento a luz do homem, o calor das paixões radia do
montante de fogo que empunha o executor de alta justiça. Fora do éden está o
inferno. A baliza encravada na fronteira maldita chama-se o TÉDlO.
Camilo Castelo Branco
Portugal 1825-1890
in Obras completas
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