(As mal-casadas são todas as mulheres
casadas e algumas solteiras.)
Livrai-vos sobretudo de cultivar os
sentimentos humanitários. O humanitarismo
é uma grosseria. Escrevo a frio,
raciocinalmente, pensando em vosso bem-estar,
pobres mal-casadas.
A arte toda, toda a libertação, está
em submeter o espírito o menos possível,
deixando ao corpo, que se submeta à
vontade.
Ser imoral não vale a pena, porque
diminui, aos olhos dos outros, a vossa personalidade, ou a banaliza. Ser imoral dentro de
si, cercada do máximo respeito alheio. Ser esposa e mãe corporeamente virginal
e dedicada, e ter porém contactos carnais inexplicáveis com todos os homens da vizinhança, desde os
merceeiros até aos [ ] ̶ eis o que maior sabor tem a quem realmente
quer gozar e alargar a sua individualidade, sem descer ao método da criada de
servir, que, por ser também delas, é baixo, nem cair na honestidade rigorosa da
mulher profundamente estúpida, que é decerto filha do interesse. Segundo a vossa superioridade, almas
femininas que me ledes, sabereis compreender o que escrevo. Todo o prazer é do
cérebro, todos os crimes, que se dão, é só em sonhos que se cometem! Lembro-me
de um crime belo, real. Não o houve nunca. São belos os que nós não conhecemos.
Bórgia cometeu belos crimes? Acreditai-me que não cometeu. Quem os cometeu
belíssimos, profusos, frutuosos, foi o nosso sonho de Bórgia, foi a idéia de
Bórgia que há em nós. Tenho a certeza que o César Bórgia que existiu era um
banal e um estúpido, tinha de o ser porque existir é sempre estúpido e
banal.
Dou-vos estes conselhos
desinteressadamente, aplicando o meu método a um caso que me não interessa.
Pessoalmente, os meus sonhos são de império e glória; não são sensuais de modo
algum. Mas quero ser-vos útil, ainda que mais não seja, só para me arreliar,
porque detesto o útil. Sou altruísta a meu modo.
Fernando Pessoa in Livro do Desassossego
(Portugal 1888-1935) Assirio & Alvim
Foto Google
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