
Um romance de amor por esta noite
em lua nevoenta ― e uma máquina velha
de escrever. Ingénua e tão portátil,
de imensa melodia desigual.
Ah, o prazer do verso em movimento
lento, o til beijando em fogo a mancha
do papel que se arrepia ao longo
de mil gralhas. O sentimento mútuo
e vagaroso: o «um» feito com ele,
o «zero» a servir de ó, a letra que não sai,
desesperada, por culpa de algum pó,
que se intromete, negro de ciúme.
Agora, o xis em cima de palavra
moribunda de amor. Morreu. Qual trágica
Desdémona, morreu. Uma morte pujante
de sereia, com tinta longa e cheia,
e não desaparecendo-se vilmente
(Ofélia evanescente). Ah, o prazer
de linha de permeio, descalça,
toda nua, em premente desvio. O frio
que ela aqui faz, fingindo-se de frio
― na letra em desalinho ― o travessão
falhado no caminho, mas em perfeito lume.
E o regresso ao ciúme mais sublime:
voltar atrás na linha e repetir
o crime: acento muito grave e de
perfume que se tinha esquecido de nascer:
aparição agudamente bela.
Ana Luísa Amaral
Portugal (Lisboa) 1956
in Poesia Reunida
Editor: Edições Quasi
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