Assim soubesses tu compreender o teu dever de seres meramente sonho de um sonhador. Seres apenas o turíbulo da catedral dos devaneios.
Trabalhares os teus gestos como sonhos, para que fossem apenas janelas abertas
para paisagens novas da tua alma. De tal modo arquitectar o teu corpo em arremedos de sonho que não fora possível ver-te fora ouvir música e atravessar, perdidas ao fundo de outras épocas onde invisíveis pares diversos vivem sentimentos que não temos.
Eu não te quero para nada senão para te não ter. Queria que sonhando ou se tu aparecesses, eu pudesse imaginar-me ainda sonhando -----
nem te vendo talvez, mas talvez reparando que o luar enche de ( k) os lagos mortos e que os ecos das canções ondeavam subitamente na grande floresta explícita, perdida em épocas impossíveis.
A visão de ti seria o leito onde a minha alma adormece, criança doente, para sonhar outra vez com outro céu. Falares? Sim, mas que ouvir-te fosse não te ouvir mas ver grandes pontes ao luar ligar às duas margens escuras do rio que vai ter ão ancião onde as caravelas são novas para sempre.
Sorrias? Eu não sabia disso, mas nos meus céus interiores andavam as estrelas.
Olhavas-me dormindo. Eu não reparava nisso mas no barco longínquo cuja vela de sonho ia sob o luar, passando longínquas marinhas.
Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
in Livro do Desassossego de Bernardo Soares
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