293.
Como
alguém cujos olhos, erguidos de um longo [
] de um livro, receba a
violência para eles de um mero claro sol natural, se ergo às vezes de mim
os meus olhos de ver-me dói-me e arde-me fitar a nitidez e independência
de mim da vida claramente externa, da existência dos outros, da posição
e
correlação dos momentos no espaço. Tropeço nos sentimentos reais
dos
outros, o antagonismo dos seus psiquismos com o meu, entala-me e
entaramela-me os passos, escorrego e destrambelho-me por entre e por
sobre
o som das suas palavras, estranho o ser ouvido em mim, a apreço
forte e
certo dos seus passos no chão atual, os seus gestos que existem
verdadeiramente,
os seus ásperos e complexos modos de serem outras
pessoas que não variantes
da minha.
Encontro-me então, nestes abismos em que me precipito às vezes,
desamparado
e oco, parecendo que morri e vivo, pálida sombra dolorida,
que a primeira brisa
deitará por terra e o primeiro contato desfará em pó.
Pergunto-me então em mim próprio se valerá a pena todo o esforço que
pus em
me isolar e elevar, se o lento calvário que de mim fiz para a minha
Glória Crucificada
valerá religiosamente a pena? E , ainda que saiba que valeu,
pesa-me neste momento o sentimento de que não valeu,
de que não valerá
(nunca.)
Fernando
Pessoa
(Portugal
1888-1935)
In
Livro do Desassossego
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