Despe-me, já não tenho
outra coisa.
Quase gelado o lábio de
beijar tanta morte.
Retalha meu olhar,
deixa os olhos sem lágrimas
como uma carne mísera,
tépida para as moscas.
Sobre tua pedra estou,
não vencido, amarrado:
fere e sob o turvo cano
do sangue pereça
o impuro animal de
cálido vagido,
pois ele amou a carne e
seu comércio
e para ele o pranto foi
carnal, como um medo
cobarde de pombas ainda
implumes nas mãos
e a oração uma pétala
entre os dentes manchada.
Raspa, arranca-me da
língua o seu nome, se tens
no dia do rigor uns
favos de doçura
e opera com teu longo
bisturi de clemência
o coração, a entranha
que não se fatigou
nem esqueceu no torpor
das noites e do vinho
e que implacavelmente
perseguias
pelas estreitas ruas da
tristeza antiga.
Corta dos dedos sua
teia de afagos
e deixa minhas mãos
apalpar cegas e alheias
o tecido longo e frio
da desilusão.
Inerme sobre o mármore oiço o teu vento
de trompas levantadas à
luz derradeira,
quando o anjo apaga a
lucerna do tempo
e remove as ligaduras,
o sombrio aposento das
urnas,
o buraco tão escuro, o
cenotáfio…
Porque estou nu diante
de ti e temo-te.
Pablo García Baena
Espanha, Córdova 1923
Trad. José Bento
in Rosa do mundo - 2001
poemas para o futuro
Editor: Assírio & Alvim
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