Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

12 de janeiro de 2014

Dúvida: João de Deus



Amas-me a mim? Perdoa,
É impossível! Não,
Não há quem se condoa
Da minha solidão.

Como podia eu, triste,
Ah! inspirar-te amor
Um dia que me viste,
Se é que me viste... flor!

Tu, bela, fresca e linda
Como a aurora, ou mais
Do que a aurora ainda,
Mal ouves os meus ais!

Mal ouves, porque as aves
Só saltam de manhã
Seus cânticos suaves;
E tu és sua irmã!

De noite apenas trina
O triste rouxinol:
Toda a mais ave inclina
O colo ao pôr do Sol.

Porquê? Porque é ditosa!
Porquê? Porque é feliz!
E a que sorri a rosa?
Ao mesmo a que sorris...

À luz dourada e pura
Do astro criador:
À noite, não, que é escura,
Causa-lhe a ela horror.

Ora uma nuvem negra,
Uma pesada cruz,
Uma alma que se alegra
Só quando vê a luz

De que ele, o Sol, inunda
O mar, quando se põe,
Imagem moribunda
De um coração que foi...

Uma alma semelhante
Não pode cativar
Um rosto tão galante,
Um tão galante olhar!

E eu vi caracteres
Que a tua mão traçou;
Mas vós... ah! vós, mulheres,
Quem já vos decifrou!

Mal te sustinha o pulso
A delicada mão;
Sentia-te convulso
Bater o coração;

Via-te arfar o seio...
Corar... mudar de cor...
E embora, ah! não, não creio...
Tu não me tens amor!

João de Deus
Portugal 1830-1896
in 'Campo de Flores'
photo by Google

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