Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

28 de novembro de 2015

António Feijó: O romance da pastora linda





A linda Pastora, guardando o seu gado,
Andava esquecida num alto montado.

E o Rei, que voltava, sombrio, da caça,
Com seus falcoeiros e galgos de raça,

Detém-se, pensando, de súbito, ao vê-la,
Em ermo tão alto, que fosse uma estrela.

-- «Oh linda Pastora dos olhos castanhos,
Que passas a vida guardando rebanhos!

A tua beleza deslumbra os meus olhos,
Como uma tulipa no meio de abrolhos.

Teus lábios parecem cerejas vermelhas,
E a pele é mais fina que a lã das ovelhas.

Sobre o oiro das tranças, tuas faces tão puras
São duas papoilas em searas maduras.

Estrela ou Pastora, se queres ser minha,
Terás as riquezas que tem a Rainha!»

-- «A flor dos valados é sempre modesta
E a humilde zagala presume de honesta.»

-- «Terás equipagens, palácios, castelos,
E joias a arderem nos fulvos cabelos;

Um trono de esmaltes em oiros maciços,
Lacaios, escravos, fidalgos submissos!...»

-- «Às vossas riquezas, perdidas nos montes,
Prefiro mirar-me no espelho das fontes;

As joias, que valem, se eu guardo o meu gado,
Com rubras papoilas a arder no toucado?...

De nada me servem fidalgos, escravos,
Pois tenho as abelhas e o mel dos meus favos.

Segui vosso rumo, que a tarde caminha;
Guardai as riquezas que são da Rainha».

-- «Não rias, vaidosa, das minhas promessas,
Que a forca tem visto mais lindas cabeças...»

-- «Talvez que mais lindas já visse pender,
Mas nunca tão firme nenhuma há-de ver,

Que a Virgem Santíssima, a Virgem clemente,
Ampara, sorrindo, quem morre inocente,

E os anjos, descendo do céu a voar,
Á forca viriam minha alma buscar!»

E a linda Pastora, que a ser ultrajada
A morte prefere,--vai ser enforcada!

Levaram-na, á força, das suas ovelhas,
Pendendo-lhe ás tranças papoilas vermelhas,

Com gritos de escárnio, no meio da turba...
Mas nada os seus olhos serenos perturba.

E toda inundada na luz que irradia,
Sorrindo, os estrados da forca subia...

Então, n'um relance, do azul transparente,
Surgindo mais alvas que a lua nascente,

Duas pombas que descem e voam a par,
Nos braços da forca vieram poisar...

E a linda Pastora dos olhos castanhos,
Tão longe da serra, cercada de estranhos,

Sem ter um gemido, sem ter um lamento,
Expira na forca... Mas nesse momento,

No grande silencio que a morte causara,
Aos olhos de todos que atónitos viram
Tão grande prodígio, coragem tão rara,
Dos braços da forca--três pombas partiram!



António Feijó
Portugal, Ponte de Lima 1859 – Suécia, Estocolmo 1917
in “ Sol de Inverno “ seguido de vinte poesias inéditas
Introd. Álvaro Manuel Machado
Editor: Imprensa Nacional-Casa da Moeda
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