Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

2 de julho de 2013

Sêde de Amor: João de Deus


















Vi-te uma vez e (novo
Extranho caso foi!)
Por entre tanto povo...
Tanta mulher... Suppõe

Que mãe estremecida
Via o seu filho andar
Sobre muralha erguida,
Onde o fizesse ir dar

Aquelle remoinho,
Aquella inquietação
D'um pobre innocentinho
Ainda sem razão!

E ora estendendo os braços...
Ora apertando as mãos...
Vendo-lhe o gesto, os passos,
Quantos esforços vãos,

O triste na cimalha
Faz por voltar atraz...
Sem vêr como lhe valha!
A vêr o que elle faz!

Pallida, exhausta, muda,
Os olhos uns tições,
Com que, a tremer, lhe estuda
As mesmas pulsações...

(Porque não é mais fundo
O mar no equador,
Nem é todo este mundo
Maior do que esse amor!

Mais vasto, largo e extenso
Todo esse céo tambem
Do que o amor immenso
D'um coração de mãe!)

Assim, n'essa agonia...
N'essa intima avidez...
É que entre os mais te eu ia
Seguindo d'essa vez!

Porque te adoro!... a ponto,
Que ainda hoje, crê!
Escuto e oiço e conto
Os grãos de arêa até,

Que tu, mulher! andando
Fazias estalar
Já mesmo longe e... quando
Deixei de te avistar!

II

   Os olhos são
   D'uma expressão!
   Que linda bôca!
   O pé nem toca,
   De leve, o chão!

   Aquelle pé
   De leve até
   Nem se elle sente!
   E sente a gente
   Não sei o que é...

   E a graça, o ar,
   D'aquelle a andar!
   Que véla passa
   Com tanta graça
   Á flôr do mar!

   Os olhos vêr
   Um só volver
   De olhar tão dôce,
   Que mais não fosse...
   Era morrer!

   Os dentes sãos
   E tão irmãos
   E tão luzentes!
   Que bellos dentes!
   Que lindas mãos!

III

Estrella, nuvem, ave,
Perfume, aragem, flôr!
Consola-me! distilla,
Da languida pupilla,
O balsamo suave
De um desditoso amor!
Estrella, nuvem, ave,
Perfume, aragem, flôr!

A flôr, de que és imagem,
A flôr, de que és irmã,
Sacia-se, e desata
O seu collar de prata
Aos beijos da aragem,
Aos risos da manhã!...
A flôr, de que és imagem,
A flôr, de que és irmã!

A perola que encerra
A flôr, é sua? Não.
O pranto que a amima,
Cahiu-lhe lá de cima
Para cahir na terra,
Para cahir no chão!
A perola que encerra
A flôr, é sua? Não!

Tu já mataste a sêde,
Mata-me a sêde a mim!
Se em nuvem piedosa
Te refrescaste, rosa!
Tambem em ti eu hei de
Refrigerar-me!... sim!
Tu já mataste a sêde,
Mata-me a sêde a mim!

É para que me orvalhes
Que te orvalhou o céo!
O liquido que veio
Aljofarar-te o seio
Bem é tambem que o espalhes
No chão... o chão sou eu!
É para que me orvalhes,
Que te orvalhou o céo!

João de Deus
Portugal 1830-1896
in 'Campo de Flores'
photo by Google

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