Pois Amor o quis assi,
que meu mal tanto me
dura,
não tardes triste
ventura,
que a dor não se doi de
mi,
e sem ti não tenho
cura.
Foges-me, sabendo certo
que passo perigo
marinho,
e sem ti vou tão
deserto
que, quando cuido que
acerto,
vou mais fora de
caminho.
Porque tais carreiras
sigo,
e com tal dita naci
nesta vida, em que não
vivo,
que eu cuido que estou
comigo,
e ando fora de mi.
Quando falo, estou
calado;
quando estou, entonces
ando;
quando ando, estou
quedado;
quando durmo, estou
acordado;
quando acordo, estou
sonhando;
quando chamo, então
respondo;
quando choro, entonces
rio;
quando me queimo, hei
frio;
quando me mostro, me
escondo;
quando espero,
desconfio.
Não sei se sei o que
digo,
que cousa certa não
acerto;
se fujo de meu perigo,
cada vez estou mais
perto
de ter mor guerra
comigo.
Prometem-me uns vãos
cuidados
mil mundos favorecidos,
com que serão
descansados;
e eu acho-os todos
mudados
em outros mundos
perdidos.
Já não ouso de cuidar,
nem posso estar sem
cuidado;
mato-me por me matar,
onde estou não posso
estar
sem estar desesperado.
Parece-me quanto vejo
Tudo triste com rezão:
cousas que não vem nem
vão
essas são as que
desejo,
e tôdas pena me dão.
Eu remédio não no
espero,
porque aquela, em que
me fundo,
pera mi, que tanto a
quero,
tem o coração de Nero
pera me tirar do mundo.
Gil Vicente
Portugal 1465-1536
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