Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

6 de maio de 2022

Ana Cristina Cesar, Arpejos



 1
Acordei com coceira no hímen. No bidê com espelhinho
examinei o local. Não surpreendi indícios de moléstia. Meus
olhos leigos na certa não percebem que um rouge a mais tem
significado a mais. Passei pomada branca até que a pele (rugosa
e murcha) ficasse brilhante. Com essa murcharam igualmente
meus projetos de ir de bicicleta à ponta do Arpoador.
O selim poderia reativara irritação. Em vez decidi me dedicar
à leitura.

2
Ontem na recepção virei inadvertidamente a cabeça contra o
beijo de saudação de Antônia. Senti na nuca o bafo seco do susto.
Não havia como desfazer o engano. Sorrimos o resto da noite.
Falo o tempo todo em mim. Não deixo Antônia abrir sua boca
de lagarta beijando para sempre o ar. Na saída nos beijamos de
acordo dos dois lados. Aguardo crise aguda de remorsos.

3
A crise parece controlada. Passo o dia a recordar o gesto involuntário.
Represento a cena ao espelho. Viro o rosto à minha própria
imagem sequiosa. Depois me volto, procuro nos olhos dela signos
de decepção. Mas Antônia continuaria inexorável. 
Saio depois de tantos ensaios. O movimento das rodas me desanuvia
os tendões duros. Os navios me iluminam. 
Pedalo de maneira insensata.



Ana Cristina Cesar
Brasil, 1952-1983
in Antologia da Poesia Erótica Brasileira
Editor: Tinta da China
photo by Google

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