Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

29 de maio de 2022

José Asunción Silva: Nocturno

 

       Uma noite,
uma noite toda cheia de perfumes, de murmúrios e de músicas de asas,
       uma noite
em que ardiam na sombra nupcial e húmida, pirilampos fantásticos,
ao meu lado, lentamente, a mim toda cingida,
       muda e pálida
como se um pressentimento de amarguras infinitas,
até ao fundo mais secreto das tuas fibras te agitasse,
pelo atalho que atravessa a campina em flor
       caminhavas
       e a lua cheia
pelos céus azúleos, infinitos e profundos espargia a sua luz branca,
       e a tua sombra
       fina e lânguida,
       e a minha sombra
pelos raios da lua projectadas,
sobre as areias tristes
da vereda se juntavam
       e eram uma
       e eram uma
E eram uma única longa sombra!
E eram uma única longa sombra!
E eram uma única longa sombra!
       Esta noite 
       sozinho, a alma
cheia das infinitas amarguras e agonias da tua morte, 
separado de ti mesma, pela sombra, pelo tempo e a distância,
       pelo infinito negro,
       que a nossa voz não alcança,
       só e mudo
       pelo atalho caminhava,
e ouvia-se o ladrar dos cães à lua,
       à lua pálida,
       e o coaxar
       das rãs...
Tive frio, era o frio que sentiam no quarto
as tuas faces e a tua testa e as tuas mãos adoradas,
       entre as brancuras níveas
       das brancas mortalhas!
Era o frio do sepulcro, era o frio da morte,
       era o frio do nada...
       e a minha sombra
pelos raios da lua projectada.
       ia sozinha,
       ia sozinha,
ia sozinha pela estepe solitária!
       e a tua sombra esbelta e ágil
       fina e lânguida,
como nessa noite morna da morta primavera,
como nessa noite cheia de perfumes, de murmúrios e de músicas de asas,
       abeirou-se e caminhou com ela,
       abeirou-se e caminhou com ela,
abeirou-se e caminhou com ela... Oh as sombras enlaçadas!
Oh as sombras que se procuram e se juntam nas noites de negruras e de lágrimas!




José Asunción Silva
Colômbia, 1865-1896
in UM PAÍS QUE SONHA - Cem anos de poesia colombiana
Editor: Assírio & Alvim
photo by Google

  

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