Ama, canta-me. Eu
nada quero
Do mundo ouvir.
Sofro e, se penso,
desespero.
Eu quero dormir.
Um sono em que a alma
se esqueça,
Vazio embalar
Que o som do teu
canto por fim desfaleça
E eu durma sem sonhar.
Como malmequeres,
para em minha sorte,
Os meus sonhos desfolhei.
Tenho medo da vida,
tenho medo à morte.
Nunca tive o que amei.
Que a tua canção seja
um nada, um afago,
Como o som longe do mar.
Eu quero dormir, Ama,
as dores que trago
Só assim podem acabar.
Criança que vê os
outros brincando
Sem brinquedos, e sem companhia…
Conta-me, ama, vá-me
o sono levando
Como uma melodia…
Nocturna esperança
feneceu no outono,
Sussurro, secaram as águas…
Canta, e que o teu
canto entre no meu sono
Como um ai sem mágoas.
Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
“in Poesia 1918-1930”
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