Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

28 de abril de 2013

Tu és o outono da paisagem : Fernando Pessoa



1.

Tu és o outono da paisagem-eu
E que névoas em mim o teu perfil!
O teu voo ao passar por meu anil
É o ritmo de um quedo ser que se perdeu...
Adejo cego o êxtase teu subtil
Com o incorpóreo rosto de ser teu.
Condessa outrora, quasi? Tardes de céu
Sobre Versailles... Abbé, y-a-t-il
Plus d’autrefois que d’ombre en ton silence?
(Se tudo isto não for verdadeiro?)
La Pompadour e o seu criado, France.
Escureceu teu corpo meu em mim
E que Versailles realmente o cheiro
Das rosas que não há no teu jardim!


2.

Contemporâneo de um amigo amante
De Bacon, mas contemporâneo apenas
Desse, seriam suaves minhas penas
E o meu tédio mais pérfido e galante...
Porque sem dúvida que o Santo Infante...
(Os teu cabelos Céline, avenas
De qualquer Eva frente às noites plenas
De verão...). Mas houve realmente Dante?
Ceptro de rei achado no Deserto...
Veio água das pálpebras que baixei
Sobre não sei que sonhos muito perto
Do teu olhar... Orvalho sobre o verde
Da relva que sem qu’rer estranha achei
Ao nosso sentimento que se perde.


3.

Pode ser que em Castelos encantados
Em outros horizontes que sou eu,
Teu gesto esqueça os olhos de Morfeu
E não tenhas mais alma do que pecados...
Pode ser, mas momentos enganados
Há-os em toda a gama de outro Alceu,
E só por noites de fogueira, o céu
Encontra estrelas nos teus olhos dados.

Parece que na Grécia antigamente
Havia um culto suave de beleza
E inda hoje o Pathernon, subitamente
Morto... Mas quem nos disse que Platão
Existiu realmente e de alma acesa?
Ora... O teu leque é belo em tua mão.


4.

Por que atalhos, Princesa, nos perdemos...
E vou escrever-lhe o Envoi deste rondel
Quando? Não sei bem, mas sou fiel
Aos iguais pensamentos que não temos...
Sem dúvida se lembram de que há mel
Só em redor de Hymeto? Quem? Os remos
Do barco? Nunca, ó emproada, os queremos
Que a vida como na morte é cruz e fel...

Basta-nos hoje e o acaso das ideias
Fala por acaso? Não... Tens as mãos cheias
Das flores que nos deu... (Lembro-me?) quem?


Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
“in Poesia 1902-1917”
photo by Google

Sem comentários: