Carta de apresentação


O SECRETO MILAGRE DA POESIA

Sentimo-nos bem com seu contacto.
Disertamos sobre as suas maravilhas.
Auscultamos pequenas portas do seu mistério
e chegamos a perder-nos com prazer
no remoínho do seu interior.
Apercebemo-nos das suas fragilidades e manipulações.
Da sua extrema leveza.
Do silêncio de sangue e da sua banalização.

Excerto

in Rosa do Mundo

28 de abril de 2013

Hora absurda : Fernando Pessoa
























O teu silêncio é uma nau com todas as velas pandas... 
Brandas, as brisas brincam nas flâmulas, teu sorriso... 
E o teu sorriso no teu silêncio é as escadas e as andas 
Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso...
 
Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte... 
O teu silêncio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto... 
Minha ideia de ti é um cadáver que o mar traz à praia..., e entanto 
Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte...

Abre todas as portas e que o vento varra a ideia 
Que temos de que um fumo perfuma de ócio os salões... 
Minha alma é uma caverna enchida p'la maré cheia, 
E a minha ideia de te sonhar uma caravana de histriões...

Chove ouro baço, mas não no lá-fora... É em mim... Sou a Hora, 
E a Hora é de assombros e toda ela escombros dela... 
Na minha atenção há uma viúva pobre que nunca chora... 
No meu céu interior nunca houve uma única estrela...

Hoje o céu é pesado como a ideia de nunca chegar a um porto... 
A chuva miúda é vazia... A Hora sabe a ter sido... 
Não haver qualquer cousa como leitos para as naus!... Absorto 
Em se alhear de si, teu olhar é uma praga sem sentido...

Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro, 
Minhas ânsias todas talhadas num mármore que não há, 
Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro, 
E a minha bondade inversa não é nem boa nem má...

Os feixes dos lictores abriram-se à beira dos caminhos... 
Os pendões das vitórias medievais nem chegaram às cruzadas... 
Puseram in-fólios úteis entre as pedras das barricadas... 
E a erva cresceu nas vias-férreas com viços daninhos...

Ah, como esta hora é velha!... E todas as naus partiram! 
Na praia só um cabo morto e uns restos de vela falam 
Do Longe, das horas do Sul, de onde os nossos sonhos tiram 
Aquela angústia de sonhar mais que até para si calam...

O palácio está em ruínas... Dói ver no parque o abandono 
Da fonte sem repuxo... Ninguém ergue o olhar da estrada 
E sente saudades de si ante aquele lugar-outono... 
Esta paisagem é um manuscrito com a frase mais bela cortada...

A doida partiu todos os candelabros glabros,  
Sujou de humano o lago com cartas rasgadas, muitas... 
E a minha alma é aquela luz que não mais haverá nos candelabros... 
E que querem ao lago aziago minhas ânsias, brisas fortuitas?...

Porque me aflijo e me enfermo?... Deitam-se nuas ao luar 
Todas as ninfas... Vejo o sol e já tinham partido... 
O teu silêncio que me embala é a ideia de naufragar, 
E a ideia de a tua voz soar a lira dum Apolo fingido...

Já não há caudas de pavões todas olhos nos jardins de outrora... 
As próprias sombras estão mais tristes... Ainda 
Há rastros de vestes de aias (parece) no chão, e ainda chora 
Um como que eco de passos pela alameda que eis finda...

Todos os casos fundiram-se na minha alma... 
As relvas de todos os prados foram frescas sob meus pés frios... 
Secou em teu olhar a ideia de te julgares calma, 
E eu ver isso em ti é um porto sem navios...

Ergueram-se a um tempo todos os remos... Pelo ouro das searas 
Passou uma saudade de não serem o mar... Em frente 
Ao meu trono de alheamento há gestos com pedras raras... 
Minha alma é uma lâmpada que se apagou e ainda está quente...

Ah, e o teu silêncio é um perfil de píncaro ao sol! 
Todas as princesas sentiram o seio oprimido... 
Da última janela do castelo só um girassol 
Se vê, e o sonhar que há outros põe brumas no nosso sentido...

Sermos, e não sermos mais!... Ó leões nascidos na jaula!... 
Repique de sinos para além, no Outro Vale... Perto?... 
Arde o colégio e uma criança ficou fechada na aula... 
Por que não há-de ser o Norte o Sul?... O que está descoberto?...

E eu deliro... De repente pauso no que penso... Fito-te 
E o teu silêncio é uma cegueira minha... Fito-te e sonho... 
Há coisas rubras e cobras no modo como medito-te,  
E a tua ideia sabe à lembrança de um sabor de medonho...

Para que não ter por ti desprezo? Por que não perdê-lo?... 
Ah, deixa que eu te ignore... O teu silêncio é um leque — 
Um leque fechado, um leque que aberto seria tão belo, tão belo, 
Mas mais belo é não o abrir, para que a Hora não peque…
 
Gelaram todas as mãos cruzadas sobre todos os peitos... 
Murcharam mais flores do que as que havia no jardim... 
O meu amar-te é uma catedral de silêncios eleitos, 
E os meus sonhos uma escada sem princípio mas com fim...

Alguém vai entrar pela porta... Sente-se o ar sorrir... 
Tecedeiras viúvas gozam as mortalhas de virgens que tecem... 
Ah, o teu tédio é uma estátua de uma mulher que há de vir, 
O perfume que os crisântemos teriam, se o tivessem...

É preciso destruir o propósito de todas as pontes, 
Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras, 
Endireitar à força a curva dos horizontes, 
E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras...

Há tão pouca gente que ame as paisagens que não existem!... 
Saber que continuará a haver o mesmo mundo amanhã – como nos desalegra !...

Que o meu ouvir o teu silêncio não seja nuvens que atristem 
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio, auréola negra...

Suave, como ter mãe e irmãs, a tarde rica desce... 
Não chove já, e o vasto céu é um grande sorriso imperfeito... 
A minha consciência de ter consciência de ti é uma prece, 
E o meu saber-te a sorrir é uma flor murcha a meu peito...

Ah, se fôssemos duas figuras num longínquo vitral!... 
Ah, se fôssemos as duas cores de uma bandeira de glória!... 
Estátua acéfala posta a um canto, poeirenta pia baptismal, 
Pendão de vencidos tendo escrito ao centro este lema — Vitória!

O que é que me tortura?... Se até a tua face calma 
Só me enche de tédios e de ópios de ócios medonhos... 
Não sei... Eu sou um doido que estranha a sua própria alma... 
Eu fui amado em efígie num país para além dos sonhos...


Fernando Pessoa
(Portugal 1888-1935)
“in Poesia 1902-1917”
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